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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Recitando minha dor - ENECS 2019

Tive a felicidade de receber a carta de aceite de dois artigos que submeti para apresentar em novembro de 2019 no XXXIII ENECS - Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Sociais - João Pessoa-PB, no GT 15: Pessoas negras em diáspora: processos de vivências como (re)existências na contemporaneidade brasileira. 
O primeiro, com título "A desvalorização continuada da natureza feminina negra e a necessidade de enegrecer o feminismo" já postado aqui no blog, mas ainda não havia submetido para evento ou publicação, segue a versão completa submetida ao ENECS. 
O segundo estou como co-autora da talentosa jovem Agatha Sou, artista e estudante de Ciências Sociais da UEPA. Muito obrigada pela oportunidade, está sendo uma ótima experiência de escrita em dupla!!! Parabéns pra nós! Agora bora dar o jeito de chegar na Paraíba! haha!
Esse texto também submetemos para publicação na revista Feminist Press, num edital muito firme sobre solidão da mulher negra, buscando relatos e produção de negras brasileiras. Tomara que seja aprovado também!
Segue então essa versão mais enxuta que enviamos para a revista e o trabalho completo que vamos apresentar no ENECS. Boa leitura!



Agatha Souza da Costa (1)
Ana Carla Tavares Franco (2)


RESUMO

             O racismo, mitos e esteriótipos que caracterizam a natureza feminina negra, que tem suas raízes na mitologia anti-mulher oriunda do período escravagista, impactam a vida social e afetiva das mulheres negras. Na adolescência, etapa da vida de muitos conflitos com a estética, aceitação, auto-estima e afetividade, as jovens negras começam a experimentar o ônus da continuada desvalorização de seus corpos e identidades, se vendo muitas vezes como subalternizadas nos relacionamentos afetivos. Para não se ver sozinha, envolve-se em relações abusivas, violentas, restando como alternativa a solidão, abrir mão de sua vida sexual e afetiva em troca de não sofrer mais decepções, abusos ou até escapar da morte. Neste sentido, baseado em leituras do feminismo negro, o presente texto aborda a experiência com a poesia e o hip-hop da jovem negra amazônica periférica, Agatha Sou, em Belém-PA, como vetor de suas dores e angústias, assim como resistência e enfrentamento a esse processo de solidão e estigmatização de seu corpo e natureza, estimulando e acolhendo mulheres negras que passam por esses sofrimentos. 

Palavras-chave: solidão, racismo, poesia, hip-hop, feminismo negro. 


O VALOR DA MULHER NEGRA 

           A sociedade brasileira foi constituída culturalmente no período da colonização/escravatura sob a influência da sociedade europeia patriarcal, que desde sempre mantém as mulheres como submissas e subalternas. Essa relação de poder se acentua com as mulheres negras, que eram vistas como mercadorias, sendo mais cruel sua condição de expropriação. 

          O peso da desvalorização continuada das mulheres negras se arrasta até a atualidade e alcança ponto crítico no período da adolescência e juventude, em que desperta para a vida afetiva. As jovens negras, vistas como objetos sexuais, se vêem muitas vezes como segunda opção em relacionamentos, experimentando a exclusão, a solidão, sem consciência exata dos fatores que as empurram para esta condição. 

          Restando poucas opções, a mulher negra acaba envolvida em relacionamentos na condição de amante, objeto sexual, relacionamento subalterno, abusivo, violento, tendo como alternativa a solidão, abrir mão de sua vida sexual e afetiva em troca de não sofrer mais humilhações, abusos ou até escapar da morte. O mapa da violência no Brasil, elaborado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais em 2015, aponta o aumento de 54% de assassinato de mulheres negras em 10 anos, provando que a violência contra mulher no Brasil tem cor, e ela é negra! 


RECITANDO MINHA DOR: POESIA E HIP HOP COMO RESISTÊNCIA 

“Orava pra Deus todo dia pedindo: 
Deus quero ser branca, Deus quero ser linda, Deus quero ser magra, 
quem sabe assim um dia eu seja amada, de alguém a namorada, 
andar pelas ruas de mãos dadas, tô cansada de ser sempre escondida e camuflada. 
Pra eles eu não sou nem mulher, tá ligado... 
eu só sou um banquete, só um boquete, só mais uma goza, só mais uma foda 
e eles dizem que não vão me chupar porque a minha buceta é mal cheirosa...” 
Trecho da poesia “Minha própria Deusa” parte 1. Agatha Sou 

            Na periferia o povo experimenta o abandono e o ápice da violência urbana, e é justamente onde vivem, em sua maioria, a população negra. A jovem negra Agatha Souza da Costa, que adota o codinome “Agatha Sou”, vive no bairro do Tapanã, periferia desta cidade amazônica, Belém do Pará, começou a experimentar em sua adolescência os impactos do racismo e da desvalorização da mulher negra no que tange sua estética e sua vida afetiva. 

            Agatha desde criança escreve suas dores em diários, poesias, crônicas e músicas, mas sempre as guardou por falta de incentivo, recebendo atenção apenas de sua mãe, que a inscrevia em cursos de redação e teatro. Somente em abril de 2019, aos 20 anos, através do projeto Slam Dandaras do Norte(3), se encorajou a apresentar seus escritos por ser um grupo de mulheres, e assim sentiu que poderia fazer o mesmo que elas. Shayra Mana Josy, autora do projeto, a incentivou a fazer mais poesias, o que demonstra a importância do apoio de mulheres negras, que expressam muito mais empatia por compreender as dificuldades e dores que uma jovem negra periférica enfrenta. 

            Na primeira edição do projeto em 2019, Agatha recebeu o prêmio de primeiro lugar e desde então não parou mais de recitar as poesias por diversos espaços culturais em Belém que lhe davam a oportunidade de declamar. O meio em que mais se inseriu foi nas batalhas de rap pelos bairros da cidade, que as convidavam pra recitar seu slam(4). 

            Por seu slam ser diferente, tanto pela performance no palco, quanto pelas letras que expressam muito sobre os relacionamentos abusivos vividos, usando palavras como “buceta” e “foda”, este escandaliza muitas pessoas e provoca diferentes reações. Assim, foi convidada a abrir alguns pockets shows(5) de artistas mulheres do rap da cidade, pôde recitar em escolas, eventos grandes, viajar para fora do estado pela primeira vez, porém, considera como mais importante o retorno das mulheres negras, gordas, trans, lgbtqia+ e periféricas, dizendo que suas poesias, ou slam, as representou e as empoderou. Vale destacar que o meio hip-hop paraense ainda é, em sua maioria, composto por homens, héteros, cis e periféricos que são excludentes em suas batalhas de rap, eventos hip-hop e outros, de modo geral é uma cena ainda muito machista, homofóbica, lesbofóbica e transfóbica. Por isso também Agatha sentiu-se instigada a inserir-se neste campo, buscando representar seu grupo, que é constantemente silenciado e invisibilizado. Através desse slam busca apresentar um olhar mais crítico para reflexão e mudança de comportamento dos homens, das mulheres, empoderá-las, combater a lgbtqia+ e fortalecer as jovens negras que passam pelo mesmo processo de dor, exclusão e solidão.

NOTAS 

1. Discente do curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Pará (UEPA). 

2. Bacharel em Administração pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Discente do curso de Ciências Sociais (UFPA) e militante da Marcha Mundial das Mulheres. 

3. “Projeto feito por mulheres e para mulheres que consiste no incentivo à produção e competição de poesia. Estreou em 2017 com foco principal em garantir o protagonismo feminino nos espaços culturais de Belém. A ideia inicial era realizar um encontro com as rappers do Norte, que são invisibilizadas no cenário nacional brasileiro.” (TELES, 2019 p. 26). 

4. “Slam, ou melhor dizendo poetry slam, é definido como: uma competição de poesia falada, um espaço livre de expressão poética, tem origem nos Estados Unidos no ano de 1986 em um bar situado na vizinhança de classe trabalhadora no Norte de Chicago.” (TELES, 2019 p. 26). 

5. pocket show são pequenos shows de rap feitos por artistas locais. 


REFERÊNCIAS 

Carneiro, Sueli. 2011. “Enegrecer o feminismo: A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”. Disponível em: https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero. 

Lemos, Amanda dos Santos. 2016. “Respeito e valorização à mulher negra”. Dignidade Re-Vista, [S.l.], v. 1, n. 1, p. 11. Disponível em: http://periodicos.puc-rio.br/index.php/dignidaderevista/article/view/185. 

Teles, Joseane Franco. 2019. “Protagonismo feminino no movimento hip hop de Belém do Pará: Reflexões de uma mana”. Belém, PA. Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia. Universidade Federal do Pará.