Mais uma tirada do baú do 1º semestre do curso de Ciências Sociais em 2014. Resenha do 2º e do 5º capítulos da obra de Marilena Chauí "Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária", em que são abordadas questões como populismo, a necessidade que temos de "mitos" e como essa cultura foi construída na sociedade brasileira. Depois dessa leitura à época, só me reforçou a ideia de não endeusar qualquer figura política que seja, pois a gente só perpetua essa cultura e jamais consegue quebrá-la.
Resenha de: "A nação como semióforo" e "Mito Fundador". In: CHAUI, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. 1ª Ed.São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
A nação como semióforo
Marilena Chaui, em Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária discorre no segundo capítulo “A nação como semióforo” sobre os símbolos e os fatos que formaram a concepção de nação em nosso país, bem como suas causas, mostrando a designação do termo semióforo para dar clareza à nação construída sob esse prisma, dando como significação:
Um semióforo é, pois, um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa ou uma instituição retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e imediata na vida cotidiana porque são coisas providas de significação ou de valor simbólico, capazes de relacionar o visível e o invisível, seja no espaço, seja no tempo, pois o invisível pode ser o sagrado (um espaço além de todo o espaço) ou o passado ou futuro distantes (um tempo sem tempo ou eternidade), e expostos à visibilidade, pois é essa exposição que realizam sua significação e sua existência. (CHAUI, 2000: p.12)
São descritos pela autora o poder que os semióforos exercem sobre a humanidade e por fim a necessidade do poder político construir um semíoforo fundamental, que será o lugar e o guardião dos semíoforos públicos, que é a nação.
O ponto de partida dessas elaborações foi, sem dúvida, o surgimento do Estado moderno da “era das revoluções”, definido por um território preferencialmente contínuo, com limites e fronteiras claramente demarcados, agindo política e administrativamente sem sistemas intermediários de dominação, e que precisava do consentimento prático de seus cidadãos válidos para políticas fiscais e ações militares. (CHAUI, 2000: p.16)
A partir deste ponto, a autora discorre sobre a necessidade de um meio de dominação do liberalismo econômico, que não significa ser sinônimo de democracia, e que o Estado-nação vem a ser esse mecanismo, que vem a enfrentar os desafios de incluir todos os habitantes do território na esfera da administração estatal ao tempo que necessita obter a lealdade dos mesmos ao sistema dirigente, em que a luta de classes e a religiosidade disputavam essa lealdade, e desta forma foi surgindo como solução a ideia de nação, em que os economistas nacionais viriam a trabalhar com o conceito de “economia nacional” e “riqueza das nações”.
Porém o estado necessitava de algo além do que a passividade de seus cidadãos, precisava influenciá-los a seu favor, uma religião cívica, chamada patriotismo. No período de 1880-1918 a “religião cívica” transforma o patriotismo em nacionalismo, tornando-se estatal, reforçados com sentimentos e símbolos de uma comunidade imaginária. O século XX com a Revolução Russa, Primeira Guerra Mundial e depressão econômica dos anos 20-30, com o aguçamento da luta de classes deu luz a arrancada mais forte do nacionalismo, o nazi-facismo.
Marilena Chaui aborda de forma enfática que “a nação como semióforo”, a “ideia nacional” é um instrumento unificador que o sistema capitalista utiliza para facilitar a dominação dos povos, sistema este que se viu ameaçado com as lutas populares socialistas, resistência de grupos tradicionais e o surgimento da pequena burguesia, que temia a proletarização e aspirava o aburguesamento.
Porque a luta de classes teve uma capacidade mobilizadora menor que o nacionalismo? Por que até mesmo as revoluções socialistas acabaram assumindo a forma de nacionalismo? Por que a 'questão nacional' parecia ter sentido? […] A possível explicação encontra-se na natureza do Estado moderno como espaço dos sentimentos políticos e das práticas políticas em que a consciência política do cidadão se forma referida à nação e ao civismo, de tal maneira que a distinção entre classe social e nação não é clara e frequentemente está esfumada ou diluída. (CHAUI, 2000: p.20)
Esta situação é, de acordo com a autora, em nosso país vista da melhor forma no processo de nacionalismo das esquerdas no Brasil nos anos 1950-60 e deste ponto passa a discorrer sobre o “caráter nacional brasileiro”, que pode vir de elaborações ideológicas de cunho positivo ou negativo, e a “identidade nacional” que precisa ser concebida como harmonia e/ou tensão entre o plano individual e o social. A primeira tem a nação como formada pela mistura de três raças – índios, negros e brancos – como sociedade mestiça que desconhece o preconceito racial, sendo o negro visto pelo olhar do paternalismo branco, enquanto na segunda o negro é visto como classe social, a dos escravos.
Toda essa construção, de acordo com Marilena Chaui, hoje parece ter perdido sentido, pois enquanto a nação e nacionalismo foram objeto de discursos partidários, programas estatais, lutas civis e guerras mundiais no período de 1830 a 1970, na atualidade deu lugar ao multiculturalismo, do direito à diferença, e a prática econômica neoliberal não apenas tirou da cena política e ideológica as nacionalidades, mas também as colocam como referenciais importantes apenas em países que não tem muito peso em termos de poder econômico ou nacionalidade travejada pela religião.
E desta forma a autora encerra fazendo a crítica a celebração do “Brasil 500”, colocando-o como pertencente ao campo mítico, um semióforo historicamente produzido, tendo como função a reatualização de nosso mito fundador.
O mito fundador
O 5º capítulo vem tratar das invenções históricas e construções culturais que circundam a história das Américas, mais especificamente do Brasil, primeiramente à época de sua “descoberta” ou “achamento”, período este que configuram os principais elementos para construção de um mito fundador, com o efeito de poder teológico-político, colocado pelo filosofo judeu-holandês Baruch Espinosa.
As grandes navegações, as conquistas e colonização foram parte constituinte do capitalismo mercantil, porém existe o ponto de vista simbólico, que vê as grandes viagens como alargamento das fronteiras do visível e um deslocamento das fronteiras do invisível. Estas viagens não trazem somente novas mercadorias, mas também novos semióforos.
Os escritos medievais consagraram um mito poderoso, as chamadas Ilhas Afortunadas ou Ilhas Bem-aventuradas, lugar abençoado, onde reinam primavera eterna e juventude eterna, onde homem e animais convivem em paz. (CHAUI, 2000: p.59)
Este trecho, aliado a ideia de paraíso colocada pelo livro bíblico de Gênesis, vem fundamentar o texto da autora no sentido da sagração da natureza das Américas, em especial nosso país, que fica evidente nos textos dos navegantes, como a carta de Pero Vaz de Caminha, cartas e diários que impressionam pela descrição de um mundo novo e diverso da Europa.
Chaui faz então o paralelo para os símbolos de nosso país, como nossa bandeira, que é quadricolor, não narra a história do Brasil, um símbolo da natureza, diferente por exemplo da Europa que desde a Revolução Francesa tem bandeiras revolucionárias que tendem a ser tricolores e são insignias das lutas políticas por liberdade, igualdade e fraternidade.
Neste sentido, vem tratar dos efeitos que produz o Brasil-Natureza, fazendo menção à teoria do direito natural subjetivo e objetivo, uma hierarquia de perfeições e poderes desejada por Deus, indicando que a Natureza é constituída por seres que naturalmente se subordinam uns aos outros. Baseado na descrição de Caminha dos habitantes da terra achada como inocentes e sem crença, os colocando abaixo dos cristãos, foi justificada a escravidão necessárias neste período de colonização, como exigência econômica.
Além dessas teorias, com a escravização de índios e negros se ensina que Deus e o Diabo disputam a Terra do Sol, pois a serpente habitava o paraíso. Surge assim outro efeito da imagem do Brasil-Natureza que é a disputa cósmica entre Deus e o Diabo, sem se referir à divisões sociais, e sim como da própria natureza.
Este efeito perdura no início do século XX com a descrição de “Os sertões” de Euclides da Cunha, substituindo Deus e Diabo pela ciência, através do estudo do clima, geologia e da geografia, presentes em sua obra, dando origem a uma tese de longa persistência, a dos “dois Brasis”, reafirmada pelos integralistas nos anos 20 e 30, colocando em um lado o Brasil litorâneo, caricatura burguesa e letrada da Europa liberal e o Brasil sertanejo, real, pobre analfabeto e inculto.
A autora coloca a história como segundo elemento na produção do mito fundador, a história teológica ou providencialista, da história como realização do plano de Deus ou da vontade divina, esclarecendo o caráter dramático do tempo judaico baseado na vontade de Deus e a relação do homem com Deus, que vem dar forma e sentido à ideia cristã de história, como operação de Deus no tempo.
Esta relação é feita pelo sentido divino dado ao Brasil, como “terra abençoada por Deus”, o paraíso reencontrado, e desta forma seríamos o berço do mundo, o mundo originário e original. “'Brasil, país do futuro' é porque Deus nos ofereceu os signos para conhecermos nosso destino: o Cruzeiro do Sul, que nos protege e orienta, e a Natureza-Paraíso, mãe gentil.” (CHAUI, 2000: p.75)
Um só rebanho, um só pastor. Uma só cabeça, um único cetro e um único diadema. A imagem teológica do poder político se afirma porque encontra no tempo profano sua manifestação: a monarquia absoluta por direito divino dos reis. (CHAUI, 2000: p.79)
Nesta altura do texto, a autora aprofunda sobre a função da monarquia absoluta como sagração do governante na produção do mito fundador, discorrendo sobre o direito divino dos reis como forma de assegurar o pleno controle para manutenção de uma rede intricada de privilégios e poderes estamentais, uma teia de clientelas e favores, corrupção e venalidade.
Um outro efeito pode ser observado se reuinirmos a sagração da história e a sagração do governante. Ao articulá-las, notaremos que o mito fundador opera de modo socialmente diferenciado: do lado dos dominantes, ele opera na produção da visão de seu direito natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito natural por meio das redes de favor e clientela, do ufanismo nacionalista, da ideologia desenvolvimentista e da ideologia da modernização, que são expressões laicizadas da teologia da história providencialista e do governo pela graça de Deus; do lado dos dominados, ele se realiza pela via milenarista com a visão do governante como salvador, e a sacralização-satanização da política. (CHAUI, 2000: p.86)
Descrevendo a forma de poder monárquico em que o rei representa Deus e não os governados e os que recebem o favor régio representam o rei e não os súditos, Marilena Chaui evidencia como a sagração do governante nestes moldes vem construir a prática da representação política em nosso país, que até os tempos atuais os representantes políticos, embora eleitos, não são percebidos como representantes, e sim como representantes do Estado em face do povo, o qual se dirige aos representantes para solicitar favores ou obter privilégios. Esta relação se manifesta com grande força no populismo da política brasileira.
Em resumo, a autora descreve o populismo como um poder que ativamente se realiza sem recorrer às mediações políticas institucionais, pensado e realizado sob a forma de tutela e do favor, em que o governante é detentor exclusivo do poder e do saber, como estando fora e acima da sociedade, um poder de tipo autocrático, que na atualidade relacionada da autora tem esse aspecto favorecido pela ideologia neoliberal, com o personalismo, narcisismo e intimismo trabalhado através do “marketing político” e da “indústria política”.
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