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sexta-feira, 17 de abril de 2020

Afetos e desafetos na quarentena


Este texto é um desabafo, então peço carinho na sua leitura. Foram meses, talvez anos me queixando sozinha por não ter um afeto decente, e mesmo passando a  compreender os motivos que me levam a estar assim, isso não deixava de ser triste. Aí mora o perigo, pois muitas vezes a carência nos leva a caminhos muito tortuosos... mulher negra, livre, não mono então, nem se fala! Parece território de ninguém! Minha carne é a mais barata, não merece valor, nem respeito. Já chorei muito por isso, quero tentar não mais.

Quando começou o isolamento social por conta da pandemia de covid-19, pensei: Agora sim! Vou amargar ainda mais essa minha condição de solidão! Porque sem quarentena já tava ruim de arrumar algum afeto, imagina agora? Mas essa foi só uma das várias angústias do confinamento, pensar em não poder ver minha filha sabe lá até quando e no caos social que se aproxima, genocídio da população pobre em nosso país, aumento do desemprego e pobreza, com certeza me consumiram muito mais!

Mas passado esse primeiro impacto de susto com o novo e tentando me adequar à rotina de poucos contatos físicos, me veio esse momento de mais serenidade, de deixar o barco correr e não sofrer por antecipação. Tentar aproveitar bem o que tenho e viver cada momento com qualidade, mesmo que seja dentro de casa o tempo inteiro. Hoje as redes sociais nos aproximam muito mais,  inclusive são elas agora responsáveis por grande parte de nosso contato. Comentava com minha comadre que se ela morasse aqui em Belém agora eu iria falar com ela da mesma maneira como estou agora falando com ela na Itália, que aprendemos de bem antes da quarentena a lidar com as distâncias e mantermos vivo nosso afeto. Então chega o momento de usufruir dessa vantagem e não somente demonizar as redes, pois como tudo na vida, se não soubermos dar um limite, acaba sendo nocivo.

Tempo para refletir e escrever, isso tem sido maravilhoso! Estudar, ler mais, estudar da forma que eu queria e não conseguia, e que me frustrava tanto por não conseguir. Nessas reflexões e estudos, passei a olhar mais pra dentro de mim e agora pra essa tristeza por falta de afetos, ressaltando que de afetos não falo só de família e amizade, essas estão comigo sempre, com pandemia ou sem pandemia, perto ou longe, bem como dariam um outro texto, mas sim dos afetos e relações que envolvem sexo. Sexo sempre nos foi colocado como pecado, algo sujo, proibido, errado ou também como algo muito íntimo, intenso, que só pode acontecer com quem “merece” ou que é necessário manter “fidelidade” com quem se faz sexo para haver respeito, enfim, essas lógicas moralizantes e monogâmicas que sempre vão dar em tretas. Inclusive a vida sexual é uma das problemáticas desse momento, por impulso meu de gostar demais de sexo, no começo pensei que isso seria um problema muito maior para quem está sem um relacionamento fixo como eu, mas quem tem seus namoros, casamentos, casos e acasos também estão encontrando seus problemas. Tomara que todos busquem e tenham chance de buscar os melhores caminhos, assim como eu estou aqui refletindo sobre os meus afetos.

E sobre eles eu fico aqui lembrando dos fracassos, do quanto já me fudi na vida e mesmo assim insisto em me inserir em relações que vou me fuder, pelo simples fato de querer me apaixonar, de sentir paixão, como se fosse uma adicção querer viver esse estado. Ou não, talvez também só vontade mesmo de ter relações bacanas,  recíprocas, amorosas, todas nós buscamos. Mas chega um momento que a gente já coleciona tantas feridas que é melhor repensar os caminhos desses vícios e carências. Nós mulheres estamos suscetíveis à violência nesta sociedade machista e somos submetidas a diversos abusos, precisamos sempre nos defender, infelizmente. As leituras sobre solidão da mulher negra passaram a fazer todo o sentido e elas também me auxiliam na busca de minorar e não me culpar por essas frustrações.

Mas como defesa, penso que preciso saber aproveitar o que tenho e o que recebo, sem precisar ter que me dar demais pra receber algo, ou por vezes nada. Quero levar tudo na mesma medida, se não tem afeto, não tem, se tem cuidado, atenção e me dá, eu dou. E ser for demais, bem, se for muito, já fico um pouco nervosa, porque o que é demais me abusa também!

E com o passar dos dias acredito que todos foram também repensando seus afetos, e alguns até surgiram, afetos que eram desafetos, afetos que estavam se construindo, afetos que eu julgava ter ficado no passado. Sinal de que pelo menos algo de bom eu deixei pra ser reconsiderada neste momento, e que ótimo! Como se a vida desse outra chance pra fazer as coisas melhores, curtir coisas boas, mesmo na distância, não se sabe até quando. E por mais que eu saiba que fui ferida muitas vezes, também tenho consciência da minha responsabilidade por ter chegado a certos momentos, sem tornar isso uma autoculpabilização, sem desconsiderar o contexto de opressão a que estou submetida. A necessidade do momento em não fazer a rancorosa, me abrir um pouco,  relaxar, aproveitar, mas sem perder a noção, ter limites.

Importante encontrar esse ponto de equilíbrio para se preservar e evitar as mágoas também, eu poderia ter evitado algumas, inclusive. Sei que não ficarei imune de escrotices eventuais, mas agora vou procurando ser mais ciente dos terrenos onde piso, ter certeza e não perder de vista o que eu quero e o que o outro quer, essa falta de diálogo e honestidade sobre os quereres nos leva a criar falsas expectativas. Tentar desconstruir um pouco dessa “Disney” de romance que constroem na cabeça das mulheres e que são responsáveis também por essas expectativas, de saber amar e curtir os afetos cada um no seu tempo e na sua medida, sem exageros, com tranquilidade. Esse tempo de caos pede serenidade para o enfrentamento, pra nossa saúde mental, afetiva, em saber aproveitar o que se apresenta, sem angústia de futuro, cada vez mais foco no presente, nesse dia, nesse agora, com a certeza de que nada é eterno, inclusive os afetos, que podem virar sim desafetos se o entendimento não for possível, isso é normal, não é o fim, é o que tem pro momento. Pode ser até que isso mude, ou não, mas não precisa mais consumir minha existência!

Que venha cada dia, único como deve ser, não preciso também perder a intensidade, pelo contrário, eu posso ressignificá-la a ponto de não me machucar e seguir bem. Minha intensidade está aqui, no que faço, no que penso, no que ajo. Não existe felicidade plena somente nesses afetos, existe também a felicidade de estar aqui em paz, sozinha em casa, podendo curtir demasiadamente e sem interrupções a mulher que sou hoje. Quero ser melhor pra mim, mais sagaz, inteligente, talentosa, gostosa, madura e vou me dedicar a isso seguindo minhas leituras feministas, meus estudos em ciência política, cuidando melhor da saúde, do meu corpo, da estética, enfim, de minha auto estima, que vejo como determinante nessas questões de humilhação por afetos. Há um mundo de ferramentas que posso lançar mão pra isso, e tenho consciência dos pequenos privilégios que tenho e que me permitem isso. Quero ser melhor não mais pros outros, deixar um pouco de me entregar loucamente à luta contra as opressões que não incomodam só a mim, mas o coletivo. Quero seguir pensando no coletivo, mas cuidando mais de mim, e ganhando carinho dos meus afetos, porque não? Se tem, eu vou querer! Mas me dando na mesma medida. E se não tem, não vou mais sofrer!
Só o que me entristece por agora é não saber quando isso tudo vai acabar e poder ficar com minha filha, mas vou distraindo a mente por aqui e por acolá pra não pensar nisso. Agradeço a quem me ajuda!

Essa vida
Ora um sopro
Por vezes longínqua
Num caminho nunca eterno
Sem volta
Sofrida
Mas que alegria te dá
Na beleza das coisas simples
Que a gente saiba te valorizar
Vida.

2 comentários:

Júlia Gabriela disse...

Tudoooo ♥️
Quero que saia uma livro ♥️

Suellen Rodrigues disse...

Querida! É bem isso! Compartilho dessa introspecção e autoconhecimento! Tudo isso vai passar e vamos sair muito diferentes! Nos valorizando mais e com certeza com uma visão mais nítida!

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