Ontem tava tomando uma cerveja na casa da minha amiga e vizinha Vivian, nos acompanhamos nessa quarentena. E dentre diversos assuntos e divagações, amigas sempre desabafam sobre a vida amorosa. A nossa é de muitos lamentos, como de muitas mulheres, mas sempre aquela vontade guardada de se apaixonar. É tão bom se apaixonar, né? Ganhar bom dia, boa tarde, boa noite, muitos carinhos, "como tu estás?", "eu vi isso e lembrei de ti!", "meu amor, estou com saudades, quero te ver!" Enfim, de ganhar esses mimos e sentir o gosto de uma paixão correspondida, porque se apaixonar a gente insiste sempre, mas se é correspondida é outra história.
Daí Vivian dizia que não adianta também a gente dizer que não vai se apaixonar porque isso é um engano, é algo involuntário, acontece. De fato, é algo que não temos domínio, não se manda no coração. Mas acordei agora bem filosofando, lembrando dessa parte da conversa, e penso que ninguém se apaixona por "puta", e assim sinto que somos, "putas". Só quem se apaixonou por puta foi o Richard Gere pela Júlia Roberts em “Uma linda mulher”, mas é um filme conto de fadas, né? Mesmo assim, o filme guarda uma pequena dose de realidade: a paixão é involuntária, o homem pode se apaixonar pela puta sim, mas ela vai ter que deixar de ser puta e se tornar posse dele.
Ah, Carla, mas não é isso que vocês querem? Uma paixão correspondida? Um amor pra chamar de “seu”? Qual é o problema então? O problema está no ser "puta" pra gente. No caso do filme é uma profissional do sexo que vai interromper sua profissão para casar e quem sabe arrumar outra profissão, ou não, pois o cara do filme é milionário, ela nem vai precisar, vai acabar virando uma puta exclusiva sabe-se lá por quanto tempo, nos contos de fadas dura para sempre. Mas aqui falamos de vida real. Não somos profissionais do sexo, vale ressaltar, e reconheço que as opressões e riscos que essas profissionais sofrem são bem diferentes do que sofremos por sermos mulheres de sexualidade livre. Minha intenção aqui não é ocupar um lugar de fala que não é meu, só justifico que acabo por me inserir na seara das “putas” porque é assim que nos enxergam e nos apontam, mulher livre é "puta" e não serve pra se apaixonar e ter “compromisso”. Eu que sou não monogâmica então, viro praticamente um E.T! Ou o que acabo sendo na prática, uma boa amiga pra conversar e pra transar.
Nessa minha lida de pesquisadora de humanas, penso na origem das coisas, vamos então à etimologia da palavra puta. Tem um apanhado bem legal nesse link do site Esquerda Diário, e venho destacar: No primeiro dicionário monolíngue do castelhano, datado de 1611, da Real Academia Española, puta é: “a rameira ou mulher ruim. Quase pobre, que sempre está quente e cheirando mal”. Deste ponto, o texto, com base nos argumentos de Silvia Federici, na obra "Caliban e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva" convida a analisar o contexto da Europa de 1600, transição do feudalismo para o capitalismo, as mulheres recebiam muito menos que os já reduzidos salários dos homens e portanto se lançavam à prostituição para complementar a renda, bem como a Igreja Católica começa a caça às bruxas, atacando os direitos reprodutivos das mulheres e impondo a subordinação da esposa ao marido no âmbito familiar, formulando a divisão de mulheres em “a Maria santa e boa trancafiada em casa” e a “perdida Eva, pecadora e expulsa do paraíso”.
Portanto, a visão de “puta”, desde o século XVII, tem uma conotação moral que vai além da venda do sexo, do corpo, mas das mulheres que não estão submissas ao seu homem, sua paixão, seu amor. E por incrível que pareça, quatro séculos depois, esta visão se faz ainda presente, e não à toa, pois se mantém por força de algo poderosíssimo e estruturante para o funcionamento do sistema capitalista: o patriarcado. E por isso mulheres livres incomodam, são subjugadas, marginalizadas, humilhadas e por fim, sem direito ao amor. O amor é algo puro e digno somente a quem faz por merecê-lo. "Putas" certamente não merecem. Além de "puta" a juventude usa bastante o termo "bandida", que vai nesse sentido também da sexualidade livre, mulheres que rompem com o patriarcado estão de fato "fora da lei".
Não pretendo deixar de ser “puta”, nem "bandida". Vivian também não. Então disse a ela que não adianta vivermos amarguradas e nos impingindo sofrimento por não encontrarmos uma paixão correspondida, pois isso está pra além de nós, é uma questão estrutural e que não vai se transformar do dia pra noite. Não é a gente que tem o “dedo podre” e só acerta em cilada, é a sociedade machista que oferece poucas alternativas em encontrar um homem que consiga respeitar nossos desejos. O patriarcado é tão nojento que um dia desses navegando pelo mundo dos comentários nas redes sociais descobri o termo “escravoceta”, destinado aos homens que começam a compreender a problemática do machismo e a tentar realinhar suas condutas para nos garantir respeito, eles são simplesmente escravocetas! Como uma ofensa àqueles que decidiram “trair” o patriarcado. Gente, cadê meu escravoceta? Hahahaha!
Infelizmente numa sociedade machista precisamos nos adaptar para manter nossa identidade e aprender a ser felizes com o que temos. Pode ser que um dia apareça uma paixão maravilhosa e correspondida, pode ser que sim, nada é impossível na vida, já tem até os escravocetas! Haha! Mas assim, precisamos ter ciência que é uma possibilidade bem remota por conta das escolhas que fizemos dentro do contexto social que nos envolve, e também por outras questões que não vou me ater agora, como o fato deu ser preta e a Vivian gorda.
Não podemos nos entregar à tristeza em não conseguirmos alcançar algo tão simples que é um amor correspondido, nem podemos mais seguir no engano de nos dar demais a alguém na esperança de conquistá-lo ou receber tudo de volta, nessa tentativa desmedida e carência absurda de ter um amor, influenciadas também por essa demanda da busca do ideal de amor romântico. Em nome do amor próprio é se dar na mesma medida do que recebe, saber valorizar e viver bem com os diversos afetos pra quem sabe um dia o acaso te premiar, ou não. Hoje, honestamente, tô evitando me lançar em paixões, por conta do que reflito aqui e com base no que já passei e sofri, me restam poucas esperanças em relações com homem hetero, muito ainda pra avançar!
Não podemos nos entregar à tristeza em não conseguirmos alcançar algo tão simples que é um amor correspondido, nem podemos mais seguir no engano de nos dar demais a alguém na esperança de conquistá-lo ou receber tudo de volta, nessa tentativa desmedida e carência absurda de ter um amor, influenciadas também por essa demanda da busca do ideal de amor romântico. Em nome do amor próprio é se dar na mesma medida do que recebe, saber valorizar e viver bem com os diversos afetos pra quem sabe um dia o acaso te premiar, ou não. Hoje, honestamente, tô evitando me lançar em paixões, por conta do que reflito aqui e com base no que já passei e sofri, me restam poucas esperanças em relações com homem hetero, muito ainda pra avançar!
Um dia isso muda, já observamos algumas mudanças graças ao avanço da luta feminista e isso nos anima a seguir lutando. São séculos de doutrinação e certamente é muito trabalho pela frente. Seguiremos firmes e decididas a não nos encaixar em padrões que não cabemos mais, honrando a luta de quem dedicou sua vida pra usufruirmos do que temos hoje. Amo ser "puta", pois para mim "puta" hoje significa ser livre! Se quiser me amar, me ame assim ou viva lá seus padrões confortáveis de relação e me deixe em paz! Garanto que não sabe o que tá perdendo! 😉
4 comentários:
Incrível esse texto, mds é isso mesmo, mt obrigadx por essa fala
mt mt foda, amo ser puta.
Adorei o texto, Caquítica. Meu único senão é com relação ao termo escravoceta, que não é apenas isso que vc disse. Na verdade é uma gíria já antiga e que se refere a homens submissos às mulheres, ou mesmo àqueles que mentem a respeito de suas reais opiniões e intenções só pra impressionar (e consequentemente comer) aa minas. Os mesmos machistas nojentos criadores dessa expressão também chamam a gente de "depósito de porra". Esse universo mascu é horrível...
Então, Nanda, escravoceta seria também um equivalente ao nosso conhecido "esquerdomacho", né? De todo modo, ser submisso a uma mulher (e que muitos casos nem é submissão, é saber ceder ou sair da linha comum da dominação masculina), merece uma sanção, e mencionei o escravoceta nesse sentido, pois foi assim que tive contato com o termo nas redes. Obrigada por trazer mais olhares!
Texto incrível
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