Esse texto foi apresentado na avaliação final da disciplina Teoria e Prática em Políticas Públicas, do Mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas que estou cursando na FLACSO - Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais em parceira com a Fundação Perseu Abramo. Gostei bastante do resultado, pois explica os rumos do desenvolvimento do nosso país pelo prisma das políticas sociais e a influência da política fiscal, fazendo compreender porque chegamos ao estado das coisas atuais.
e desigualdade social no Brasil
Ana Carla Tavares Franco
Quando se pensa em perspectiva ampliada o desenvolvimento de um país se abrange para além do campo econômico, incluindo elementos da política, do social e ambiental. O Estado é o organismo que opera esse processo e a sustentação do desenvolvimento nacional se ancora nas políticas sociais, que possuem papel estratégico para enfrentar situações conjunturais adversas e criar bases para construção de uma nação econômica e socialmente mais forte e democrática, por meio da ampliação da justiça social, favorecimento do crescimento e da distribuição de renda.
A política social, como parte das ações do Estado para o desenvolvimento do país, é uma das fontes de influência sobre o processo de desenvolvimento e elemento irradiador de uma série de relações e dependências devido a sua diversidade. De acordo com Jorge Castro (2012):
A concepção sobre a política social sustenta-se no fato de que ela, em seu estágio mais avançado, se faz presente mediante complexos esquemas de distribuição de renda, produção e provisão de bens e serviços, distribuição de ativos patrimoniais, aplicando significativas parcelas do Produto Interno Bruto (PIB) além de regular alguns setores do mercado e empregar expressiva parcela da força de trabalho do país. Em seu desenrolar, essas políticas afetam a situação social dos indivíduos, famílias e grupos sociais, induzindo melhorias na qualidade de vida da população e, ao mesmo tempo, dadas suas dimensões, alteram a economia e a autonomia de um país, o meio ambiente e o próprio patamar de democracia alcançado, tornando-se, assim, elemento fundamental para o processo de desenvolvimento nacional. (p.1012)
Ainda no entendimento de Jorge Castro (2012) a política social trata-se de “um conjunto de programas e ações do Estado que se concretizam na garantia da oferta de bens e serviços, nas transferências de renda e regulação de elementos do mercado.” (p.1014), buscando realizar dois objetivos conjuntos que são a proteção social e a promoção social.
A proteção social dos cidadãos está ligada à seguridade social, que se baseia na ideia de forçar a solidariedade aos indivíduos, famílias e grupos em determinadas situações de dependência ou vulnerabilidade, como uma pessoa acidentada e incapacitada de trabalhar, vulnerabilidade de crianças e idosos, situações que impendem o ganho do próprio sustento em decorrência de fatores externos alheios à vontade do indivíduo. A promoção social se compreende como resultante da geração de oportunidades, igualdades e resultados para os indivíduos ou grupos sociais. A expansão de bens e serviços sociais são a materialização da geração de igualdades, principalmente com escolarização e acesso à saúde, em conjunto com políticas públicas como de inclusão produtiva de diversos tipos, nas cidades e no meio rural. Os melhores resultados serão alcançados ao conseguir atingir as populações mais pobres com bens e serviços de boa qualidade.
Deste modo, o formato e amplitude das políticas sociais de proteção e promoção social, dada as condições históricas estruturais, situação e contexto presente de cada país, seus resultados vão influenciar diretamente na direção tomada pela política social, que podem resultar na ampliação da justiça social e coesão social. Quando o gasto autônomo com políticas sociais se torna relevante para o ritmo de expansão da atividade econômica, estabelece-se uma determinada conexão entre essas políticas e os fatores econômicos, pois o gasto público com políticas que permitem a ampliação do sistema de garantia de renda, gerando determinado tipo de distribuição de renda, altera o padrão de consumo de indivíduos, famílias e grupos, com capacidade de criar um amplo mercado interno de consumo.
Em relação às questões ambientais, Jorge Castro (2012) afirma que:
a política social pode e deve cumprir papel relevante quando da elaboração e implementação de suas políticas, buscando a recuperação e preservação do meio ambiente como critério para desenho de próprias ações. Em contrapartida, os problemas ambientais, quando de suas ocorrências, atinge fortemente as populações mais pobres, forçando ainda mais a necessidade de ampliação das políticas socais. (p.1017)
Manter esse conjunto de políticas exige a mobilização de recursos fiscais compatíveis e no Brasil vem se alterando significativamente o patamar dos gastos sociais desde o final dos anos 1980, e para poder fazer frente às despesas geradas pelos serviços e benefícios ofertados a responsabilidade pública no seu financiamento foi expandida de forma significativa a partir da Constituição Federal de 1988, com novo arranjo das relações federativas descentralizando as responsabilidades e os recursos, reduzindo à dependência em relação à União.
Os recursos para viabilizar as políticas sociais estatais dependem de tributos e deste modo ficam à mercê do sistema tributário e à política fiscal adotada. Em nosso país, o sistema tributário está configurado de modo a limitar a capacidade das políticas sociais em alterar a realidade social, pois:
mesmo que as políticas sociais protejam os cidadãos mais vulneráveis, seus efeitos redistributivos serão parcialmente comprometidos pelo fato de que os beneficiários das políticas sociais são, em certa medida, também seus principais financiadores. Visto sob esse prisma, a dicotomia entre “contribuintes e não contribuintes [sic]” perde muito de seu significado, pois todos são contribuintes e mesmo os mais pobres sustentam a arrecadação tributarias devido à tributação indireta. (CASTRO, 2012, p.1027)
Somado a isso, a estratégia de estabilização monetária pós-1994 carrega um novo padrão de financiamento dos gastos sociais federais de 1995 a 2002, gestão psdebista de Fernando Henrique Cardoso. O relativo controle da inflação conduziu o governo brasileiro a um crescente processo de endividamento, quando se reduziram as fontes externas de financiamento e o governo federal foi obrigado a cortar gastos reais e incrementar as receitas próprias para garantir a estabilização monetária, estagnando o ritmo de crescimento do Gasto Social Federal (GSF), que é divido por áreas de atuação, das quais são: Educação, Cultura, Saúde, Alimentação e Nutrição, Saneamento e Meio Ambiente, Previdência Social, Assistência Social, Emprego e Defesa do Trabalhador, Organização Agrária, Habitação e Urbanismo e Benefícios a Servidores Públicos.
Os gastos sociais reduzem a desigualdade social e a política fiscal é um instrumento que se utiliza para amenizar as desigualdades de mercado. A Europa é muito menos desigual que a América Latina não somente pelo mercado de trabalho diferenciado, mas principalmente pelo papel do Estado. Fazendo uma comparação do índice de Gini (que aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos) entre os países latino-americanos e europeus, presente no estudo da CEPAL (2015), percebe-se que quanto maior o gasto público se altera a desigualdade de renda, evidenciando o impacto redistributivo da política fiscal.
A gestão petista do governo federal a partir de 2003, com a presidência de Luis Inácio Lula da Silva tem como característica o aumento dos gastos sociais como mecanismo de combate à desigualdade social, com diversos programas em todas as áreas de atuação do Gasto Social Federal, que segundo Eduardo Fagnani (2011), foi um governo que viveu sob a tensão entre os paradigmas do Estado Mínimo versus Estado de Bem-Estar Social, tendo como primeira etapa (2003-2005) a Mudança ou Continuidade, marcada pela manutenção da ortodoxia econômica que teve consequências nos rumos tensionados das políticas sociais, e a segunda etapa (2006-2010) de Ensaios Desenvolvimentistas, marcada pelo arrefecimentos dessas tensões.
A crise financeira de 2008, que impactou o mundo inteiro e teve origem na crise da bolha imobiliária dos Estados Unidos, que levou a falência de bancos e queda das bolsas mundiais, também foi sentida no Brasil e a gestão de Dilma Roussef (2011-2016) adotou uma política fiscal de enfrentamento da crise subsequente a esse acontecido que gerou uma desaceleração do crescimento em seu primeiro mandato. Após um momento de rápida recuperação da crise, a mudança no arranjo da política econômica foi de reversão da política fiscal expansionista dos anos anteriores diante do cenário de crise da Zona do Euro no início de 2012, combinada com a desaceleração da economia chinesa e lenta recuperação dos EUA. As condições internacionais mudaram drasticamente e tornaram-se cada vez mais adversas, e, assim, a economia brasileira passou da desaceleração para uma recessão no segundo mandato de Dilma, tornando-se cada vez mais difícil a manutenção de uma política econômica que aumentasse ou pelo menos mantivesse os gastos sociais, gerando descontrole nas contas públicas de despesas e receitas.
A situação abriu margem para os interesses de classe dos capitalistas, que ansiosos por adotarem uma agenda de economia política de austeridade, atuaram em torno do golpe em 2016 que depôs a presidenta Dilma Rousseff. Com o argumento de que para arrumar a “bagunça” e a crise política, econômica e social, chamada de “conjunto da obra” pelo qual justificaram a derrubada do governo, seria necessário aplicar uma política econômica rigorosa, de disciplina, sacrifícios, com políticas fiscais restritivas de redução de gastos e aumento de impostos, que por meio desse ajuste fiscal ajudariam a economia e viria a surtir efeito expansionista, corroborando com o crescimento econômico.
A defesa da austeridade fiscal sustenta que, diante de uma desaceleração econômica e de um aumento da dívida pública, o governo deve realizar um ajuste fiscal, preferencialmente com corte de gastos públicos em detrimento de aumento de impostos. Esse ajuste teria efeitos positivos sobre o crescimento econômico ao melhorar a confiança dos agentes na economia. Ou seja, ao mostrar “responsabilidade” em relação às contas públicas, o governo ganha credibilidade junto aos agentes econômicos e, diante da melhora nas expectativas, a economia passa por uma recuperação decorrente do aumento do investimento dos empresários, do consumo das famílias e da atração de capitais externos. A austeridade teria, portanto, a capacidade de reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e retomar o crescimento econômico. (BRASIL, 2018, p.17)
São diversos argumentos utilizados para convencimento da população sobre a necessidade de implementação de uma economia política de austeridade fiscal, que se concentram no mito da fada da confiança, em que os agentes privados resgatariam a confiança e passariam a investir no país diante dessa agenda de “disciplina”, e na metáfora do orçamento doméstico, em que é feita uma falsa simetria do orçamento de uma família com o orçamento do governo, lançando mão do argumento moral de que os anos de excesso devem ser remediados com abstinência e sacrifícios, tendo a austeridade como remédio.
A comparação do orçamento do governo com o orçamento familiar é equivocada, pois o governo tem a capacidade de definir o seu orçamento e fazer escolhas para tal, como tributar pessoas ricas ou importações de bens de luxo para não fechar hospitais, enquanto a família não tem poder de definir o quanto ganha, o orçamento público decorre de uma decisão coletiva sobre quem paga e quem recebe, quanto deve pagar e quanto deve receber. Famílias não emitem títulos de dívida em sua própria moeda e não definem a taxa de juros das dívidas que pagam. Já o governo faz tudo isso.
Os capitalistas se beneficiam das políticas de austeridade à custa de direitos sociais da população, gerando recessão e desemprego, corte de gastos, redução das obrigações sociais, abre espaço para futuros cortes de impostos das empresas e elites econômicas, redução da quantidade e qualidade de serviços públicos, aumentando a demanda de parte da população por serviços privados, que aumenta os espaços de acumulação de lucro privado.
A austeridade é também um dos três pilares centrais do neoliberalismo, juntamente com a liberalização dos mercados, em especial o de trabalho e o financeiro, e as privatizações (Anstead, 2017). A racionalidade dessa política é, portanto, a defesa de interesses específicos e é ainda um veículo para corroer a democracia e fortalecer o poder corporativo no sistema político. Essa perspectiva traz luz para a realidade brasileira, na qual as políticas de austeridade acontecem em um período de extrema instabilidade política e de aumento das tensões de classes. Nesse contexto, a austeridade contrapõe as vítimas dos cortes – principalmente a parcela mais pobre da população – aos perpetradores dessas políticas –as elites econômicas e um governo subserviente. No Brasil, a austeridade impõe o que foi a ambição de décadas de segmentos políticos mais conservadores: revogar o contrato social da Constituição Federal de 1988 e aprofundar as reformas neoliberais. (BRASIL, 2018, p.21)
O governo de Michel Temer trouxe logo em seu primeiro mês em 2016 a proposta de um suposto “Novo Regime Fiscal”, aprovado em dezembro através da Emenda Constitucional 95/2016 (EC 95), instituindo uma regra para as despesas primárias do Governo Federal com duração de 20 anos e possibilidade de revisão – restrita ao índice de correção – apenas após 10 anos. Em resumo, esse novo regime institui uma permanente austeridade e a política fiscal adotada tem papéis múltiplos, em que se destacam as dimensões redistributiva, estabilizadora e de provisão de bens públicos ou semi-públicos.
A eleição de Jair Messias Bolsonaro veio a ser a garantia de manutenção desse regime de austeridade, que atende ao grande capital especulativo que investe e o mantem até hoje na presidência, mesmo diante do seu índice crescente de rejeição e dos diversos pedidos de impeachment engavetados no congresso. Sua permanência no poder atende aos interesses da classe dominante em detrimento da maioria da população, composta pela massa de trabalhadores e trabalhadoras que em boa parte assiste incólume a crise pela qual paga o preço e em outra parte ainda é convencida a apoiá-lo através de uma grande máquina de produção de desinformação e de comunicação através das redes. A próxima eleição se dará em torno daquele que conseguir conciliar esses interesses, pois o grande capital nunca jogou pra perder, quem perde somos nós, o povo que os sustenta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Brasil Debate; Fundação Friedrich Ebert (2018) Austeridade e Retrocesso: impactos sociais da política fiscal no Brasil. São Paulo. Acesso em: 09/01/2019. Disponível em: https://goo.gl/AqAfR7
Cardoso Júnior, J. C., & Castro, J. A. (2016). Economia política das finanças sociais brasileiras no período 1995-2002. Economia E Sociedade, 15(1), 145-174. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8642924
CASTRO, J. A. (2012). Política social e desenvolvimento no Brasil In: Economia e Sociedade, v. 21, n. 4, dez. 2012 [especial]. Disponível em: https://goo.gl/NySV56
DWECK, Ester., TEIXEIRA, Rodrigo A. A política fiscal do governo Dilma e a crise econômica. Texto para discussão. IE/UNICAMP n.303. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/artigos/3532/TD303.pdf
FAGNANI, Eduardo. (2011). A política social do Governo Lula (2003-2010): perspectiva histórica. Texto para discussão. IE/UNICAMP n.192. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/artigos/3105/TD192.pdf
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