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domingo, 21 de fevereiro de 2021

Maternidade: amor, solidão, imposição

Quando a mulher se entende com um útero, possuidora de um órgão que pode gerar outro ser dentro de si, sente em algum momento o dilema de querer ou não experimentar a sensação de gerar um filho. Daí é viver a dicotomia do cuidado e medo de engravidar cedo demais e mais tarde a angustiante contagem regressiva de um “relógio biológico”, como se tivéssemos um prazo de validade prestes à expirar. Esse dilema vem acompanhado de muitas questões e influências, principalmente ligadas à nossa socialização e modelo de sociedade que estamos inseridas. 

Para a maioria de nós, a maternidade é romantizada, é pintada de rosa todos os dias desde nossas brincadeiras de cuidar de bonecas até os filmes, animações, novelas e séries que transmitem a imagem do final feliz da mulher sendo mãe e formando uma família com seu príncipe encantado. A mulher que ousa apontar as desvantagens e crises reais do ser mãe e desse ideal perfeito de família tradicional é castigada por subverter essa ordem, recebe julgamentos depreciativos como amargurada, ressentida, mal-amada, frustrada, louca, doente. É preciso muita coragem pra contrapor a ordem vigente!

“Ser mãe é padecer no paraíso” escutamos desde cedo. O paraíso, eu como mãe posso afirmar, é o amor de uma criança, sentir o amor de uma criança é algo sem igual, sentir no olhar, no sorriso, nos gestos mais verdadeiros e sinceros que aquele serzinho tão pequeno e tão incrível, te ama de forma honesta e pura. Mas ouso dizer que esse amor, o de mãe, da maternidade, não é o maior, nem o mais intenso e único, é o amor da criança que te causa essa sensação. 

O amor de quem cuida e convive com uma criança intensamente, de quem é responsável por sua vida, uma tia, um tio, uma avó, um avô, padrasto, madrasta, ou até de alguém sem parentesco algum, pode ser tão intenso e protetor quanto de uma mãe. O amor nasce da convivência. Tu experimentas esse amor, por exemplo, quando tá na rua, passa por brinquedinhos de um camelô e já lembra da criança, quando sente saudade, quando se preocupa na doença, não quer vê-la sofrer e morre de medo de perder essa criaturinha. Enfim, acredito que esse amor pode ser experimentado na mesma dimensão, independente de ser mãe.

Outra situação são das mães que não sentem esse amor, seja por sofrerem com a depressão pós parto ou surpreendidas pela alta carga de demandas e responsabilidades que um bebê exige. A mulher se vê em crise, pelos julgamentos ou por sentir-se horrenda e monstruosa ao não corresponder essa lógica do "amor maior do mundo", por vezes não se percebem adoecidas e só intensificam seu estado de dor ao não buscar ajuda profissional. O mesmo julgamento cruel se dá com mães que abandonam os filhos, ao não considerar os fatores psicológicos, hormonais, sociais e estruturais que podem ter levado a essa atitude. Cada ser é único e experimenta as sensações de forma diferenciada, por isso a importância de parecer de especialistas ao invés de achismos ou execrações.

O amor, para além do sentimento, também é uma construção social, deste modo, o amor e o instinto materno nem sempre existiram nesses moldes na história da humanidade. A maternidade compulsória foi incorporada à nossa cultura com objetivos definidos e a coerção social, conceito de Durkheim, é um mecanismo utilizado na manutenção da cultura da maternidade compulsória, pois no modelo capitalista quanto maior for o excedente de mão de obra, maior também é a possibilidade de exploração dos seres humanos, que irão se submeter a qualquer oferta de trabalho por sua subsistência. 

Mulheres são as máquinas reprodutoras de mão de obra. A sociedade pressiona de diversas maneiras as mulheres para que sejam mães e formem família, tendo a romantização como arma das mais poderosas, que passa a ser utilizada de forma mais contundente a partir da queda da cultura dos casamentos arranjados nas sociedades ocidentais, em que entra em cena a união por amor, e o avanço da ciência com os métodos contraceptivos, que vieram a permitir à mulher escolher. Para manutenção da ordem, se faz necessário influenciar nessa escolha.

O romantismo nasce entre os séculos XVIII e XIX na Europa, junto com a transição para o sistema capitalista e pelas mãos da burguesia. E o dia das mães se oficializou no Brasil em meio ao seu processo tardio de formação do Estado capitalista industrial, início do século XX, e em sua comercialização, além do aquecimento da economia e do comércio, é vendido às mulheres que não existe amor igual ao de mãe, e a mulher que não vir a experimentar esse amor será incompleta, infeliz, sem amor, seca, e as que se negarem ser mães serão acusadas de egoístas. 

É com essa pressão que as mulheres que optam por não ter filhos têm que conviver e algumas acabam por ceder, arrependendo-se mais tarde. E as mulheres que não podem gerar filhos sofrem também com essa pressão, se culpam e se martirizam pelo castigo de nunca poderem sentir esse amor. Poderiam adotar uma criança, mas vem os argumentos de que não é a mesma coisa, tem que ter meu sangue, meu DNA, o do pai também, e um monte de imposição que só levam a um caminho: a mulher como ser reprodutor. 

Controlando nossos úteros e nossas decisões, somos conduzidas à reproduzir a qualquer custo. Outra ferramenta que reforça é a religião, na maioria cristãs, que encorajam o não uso de métodos contraceptivos, pois interromper a reprodução humana configura "pecado", no máximo uso da tabelinha e abstinência sexual, que além de pouco eficazes, não previnem de DSTs.

A realidade é que a mesma sociedade que nos empurra para a maternidade é a mesma que depois não vai nos dar uma lata de leite e nem cuidarão da criança para que a mãe possa trabalhar, estudar, viver. Aliás, viver é algo que não pertence às mães, pois a vida delas agora pertence aos filhos. “Meus filhos são a minha vida!” já ouviu isso? A anulação feminina com a maternidade é tão natural que torna-se imperceptível.

A maternidade é muitas vezes solitária. Uma criança exige atenção o tempo inteiro e essa atenção compulsoriamente é responsabilidade da mãe, pois “quem pariu Mateus que o embale”. Quer sair pra tomar um chopp com as amigas, mas tem um bebê? Vai passar por julgamento com certeza, mãe não tem direito ao lazer, maternidade é padecer, lembra? E isso se conseguir alguém pra “embalar o Mateus”.

“Mas se a criação for compartilhada com o pai e se tiver rede de apoio é mais leve!” Não é bem assim. Primeiro que mesmo com rede de apoio, ainda vai recair na mulher o maior peso da responsabilidade por tudo, e dinheiro não será impeditivo de sofrer com o machismo, os julgamentos e pitacos serão uma constante. E na real, na maioria, mulheres e famílias não têm condições de pagar por uma rede de apoio, restando muitas vezes para a mulher abrir mão do emprego ou entregar para a avó cumprir esse papel “por amor”. O cuidado feminino é pago com “amor”.

Por amor, mulheres cuidam da casa, da família, do marido, reproduzem mão de obra e criam pra entregar ao mercado, tudo isso sem remuneração, pois as tarefas domésticas não são vistas da mesma maneira que um trabalho formal, são vistas como cuidado, como amor, e o cuidado pertence às mulheres. O capitalismo e o patriarcado dependem desse trabalho. 

Ao interseccionar com raça e classe, observamos que as mulheres negras e pobres são as que mais assumem esse papel e de forma dupla, pois cuidam das suas crias e das de quem são pagas para cuidar, como babás e empregadas, com remunerações baixas e poucos direitos, lembrando que outrora, no período escravagista, nem remuneração havia. Não à toa a sociedade brasileira, racista e saudosa da escravidão, reagiu com muitas críticas em 2015 à legislação do trabalho doméstico.

Neste sentido, por vivermos numa sociedade estruturalmente machista e racista, não se consegue compartilhar de igual pra igual a responsabilidade de mãe e pai com sua cria, nosso papel consolidado de cuidadora nos faz naturalmente assumir maiores cargas de atenção do que o pai, e muitas vezes sem nem percebermos, nos culpamos se nos ausentamos e falhamos nesse papel. O peso da responsabilidade não é o mesmo, seja por preguiça e relaxo desse homem, seja pela conveniência que eles têm de não terem sido socializados da mesma forma que nós, e por mais maravilhoso e participativo que seja esse pai, muitas vezes nos vemos cara a cara com a solidão.

A solidão de quando ele sai pra trabalhar e estamos integralmente com uma criança em casa. A solidão de dar conta de tarefas que eles se negam a assumir, seja com a desculpa de não possuir habilidade, de que a mulher faz melhor, que está cansado do trabalho, mesmo que a mulher também tenha um emprego, ela não tem direito ao descanso. A solidão de não sermos lembradas pelas amigas e amigos quando estamos com uma criança. Ninguém quer fazer programa com quem tem criança, a não ser as amigas mães que estão na mesma, daí dá-se as mãos e se ajudam, e se a mãe for casada ainda é esquecida pelas amigas mães solos muitas vezes, por ter guardada a impressão de que a casada não está sozinha, ela tem uma família, tem um marido, tem companhia. 

Agora amigo pai pra fazer o mesmo, ainda não vi. Até porque raras vezes a gente vai ver um pai completamente sozinho com crias, eles sempre estão acompanhados e nem precisam nos procurar pra esse apoio. Observe por exemplo num parquinho quantas crianças estão acompanhadas de um homem sozinho e quantas estão com uma mulher sozinha. Eles quando estão no parquinho sempre têm companhia, mas muitas mulheres não.

Um homem pai sozinho é rapidamente assessorado, é visto como herói, de tão raros que são. A esposa, a mãe, a sogra, a namorada, a amante, uma amiga, sempre alguém se compadece de um homem sozinho com uma criança, inclusive ajudam por preocupação com a criança também, já que o papel de cuidado não pertence aos homens e a criança pode estar assim malcuidada. A não ser que ele negue essa ajuda feminina e resolva assumir tudo sozinho, o que é bem raro também, chega a ser exceção, pois sentem o peso da solidão, da responsabilidade e rapidamente podem vir aceitar as ofertas femininas de cuidado. 

É uma vantagem que não se enxerga, porque é naturalizada. Para a mãe, resta a força pra dar conta de tudo, o estigma das mulheres guerreiras. E quando entram em colapso pela sobrecarga, adoecem depressivas, são mais uma vez julgadas como fracas ou cruéis, egoístas por negarem-se a dar conta dessa missão divinal, uma fracassada.

Se chegaste até aqui, mana, deixo minhas sugestões: Se tu queres ser mãe, pesa tudo, pense no orçamento, nas atividades que deixará de exercer temporariamente por causa da criança, das anulações, leva alguns anos da vida. Se deseja dividir a criação com o pai na mesma casa, precisa pesar também a convivência com um homem, porque no final de tudo a carga maior vai ser tua, por mais alecrim dourado que ele seja, não tem como escapar disso porque a sociedade toda é estruturada pra ser assim, com o peso pesado para as mães, e a não ser que ele seja um ET, ele foi criado e socializado nesse mundo, com papeis definidos para homens e mulheres. E no momento que apertar peça ajuda, pois tu podes adoecer em qualquer momento, ou não. 

Se o casamento pesar mais que a maternidade, te causar mais problemas e infelicidade, caia fora! Por mais difícil que seja ou o tempo que leve, te organiza e vai embora, em algumas situações é caso de vida ou morte, infelizmente, mas pode ter certeza que vais dar conta muito melhor da tua vida e da maternidade sem esse peso!

Se tu NÃO queres ser mãe, mantenha firme tua decisão. Não mude de ideia pra agradar quem quer que seja, principalmente homem, só se for tua vontade mesmo, não imposição. Não ceda, porque depois na solidão vai bater o arrependimento, não do amor da criança, mas das anulações e privações que tu decididamente já estavas disposta a não querer passar e vais te amargurar por isso, sem volta. Se vier a engravidar mesmo assim, pese bem a decisão, pois é teu corpo e tua vida que vai mudar.

Importante entender que filhos não são poupanças para o futuro, nem posses, objetos ou em quem depositamos nossos desejos não realizados, é incerto apostar no “quem vai cuidar de mim na velhice”, seja pelo medo de ficar só, ou o filho vai se dar bem e te bancar, enfim, um mundo de expectativas e responsabilidades num ser que sequer pediu pra nascer. Filhos seguem a vida e não temos como controlar seus destinos. Medo de ficar só nos mete em ciladas, cuidado! Não há nada de aterrorizante em morar sozinha, nem de fracasso ou amargura, cultive sua autonomia, amor próprio e seja feliz!

Se tu queres ser mãe, já ciente de tudo que foi dito aqui, mas não consegue engravidar, adote uma criança, não exite! O amor é idêntico, é o amor de uma criança cuidada por ti, que vai te chamar de mãe do mesmo jeito. Sempre digo à minha filha que tudo que a gente cuida bem e dá amor fica bem, e sempre nos responde de alguma forma. Nossas plantas ficam bonitas, dão flores se bem cuidadas, e uma criança dá o amor mais puro, independente se saiu ou não da tua barriga. 

Nem cair em conversa de que a criança adotada pode vir com personalidade do pai ou mãe que tu sequer conheces. Caráter não vem em DNA, o ser humano é moldado em sociedade, de acordo com o núcleo social que vive, ele vê e repete, e assim como é moldado em casa, pela família, a sociedade também molda e apresenta diversas perspectivas, e mais uma vez não temos controle. Filhos podem ser bons ou ruins adotivos ou não.

E se não pode gerar e também não quer, não se martirize, nem se deixe abater. É difícil, mas infelizmente é essa a vida, precisamos nos defender e tentar viver da melhor forma. A maternidade compulsória, bem como a imposição do conceito de família tradicional, podem levar à realidade de violência, irritabilidade e frustrações. Uma criança precisa ser muito desejada e planejada, pois exige altas cargas de paciência, amor e estrutura para sua educação.

Que possamos refletir mais sobre essa escolha e que não nos permitamos adoecer por coerções sociais. Vamos sentir culpa, sendo mães ou não, por isso é importante ter noção da estrutura que nos dita as regras para não cair no jogo, assumindo culpas que não nos pertence, são impostas. Que nossos corpos e nossas decisões sejam livres! Força sempre às mulheres, é urgente descolonizar nossos afetos!

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