Esses dias estava organizando um e-mail que há tempos não mexia e encontrei diversos trabalhos que fiz no 1º semestre do curso de Ciências Sociais da UFPA, publico esta resenha agora porque tem tudo a ver com o que tenho refletido esses dias sobre a conjuntura no meu trabalho. Certeza que poderia ser um trabalho melhor hoje, mas demos o devido desconto por ser um trabalho de caloura ;)
Resenha de: FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Editora Global, 49ª Ed. São Paulo. 2004.
Os indígenas na obra Casa-Grande e Senzala
Em
Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre se propõe a fazer uma análise da
formação da família brasileira. Para tanto, enumera detalhadamente ao longo de
todo o livro as possíveis influências dos diversos povos que contribuíram para
sua formação, destacando como elemento fundamental a miscigenação racial.
Freyre considera que no
Brasil predominou, para a formação étnica e cultural de sua sociedade, a
democracia racial. Sob sua óptica, os povos nativos das terras do “Novo Mundo”,
os colonizadores portugueses e os negros trazidos da África como escravos
contribuíram de forma praticamente harmoniosa para a constituição dos hábitos e
costumes da sociedade patriarcal brasileira. Isso se vê claramente quando
argumenta, ainda no prefácio da obra, que “[...] a miscigenação que largamente
se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria
conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e
a senzala [...]”. (FREYRE, 2004: p. 33)
Tal perspectiva foi duramente
criticada por seus comentadores, pois desconsidera, na maior parte das vezes,
os intensos conflitos ocorridos entre essas diferentes culturas. Sob tal visão,
não se percebe as imposições e as transformações de costumes. Pode-se mesmo
dizer que a visão de Freyre é ainda carregada pelo olhar etnocêntrico do
“civilizador” europeu e não é capaz de perceber, ou não o quis, as resistências
e as disputas ocorridas nesse processo.
Além disso, Freyre
considera, ainda, a casa-grande como lugar de excelência da manifestação do
caráter brasileiro:
Nas casas-grandes foi até hoje onde
melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social [...].
Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos
completar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido” [...]. (FREYRE, 2004:
p. 45).
A passagem acima evidencia
muito do pensamento de Gilberto Freyre. Primeiramente, mostra a importância
atribuída por ele à estrutura agrária instalada no país e seu modelo
arquitetônico e administrativo. A casa-grande era residência, sede
administrativa do engenho concebido como um modelo feudal, o “lugar de poder”3
para o senhor, e é em seus domínios que Freyre lança seu olhar. Além disso,
manifesta sua intenção de resgate histórico das “tradições brasileiras”;
tentativa de buscar o “tempo perdido”.
No
entanto, é preciso destacar um aspecto positivo e inovador da obra de Freyre.
Ele aborda com profundidade um aspecto da história que hoje é chamado de
história do cotidiano, analisando os ritos religiosos ou místicos, a culinária,
a higiene, entre outros aspectos.
Assim, após apresentar as
condições gerais do contato entre as diferentes raças no Brasil, o autor
destaca um capítulo de seu livro para apresentar as influências deixadas pelas
nações indígenas para seus descentes miscigenados, analisando muito da cultura
dos caboclos do Norte e do Nordeste brasileiros.
Ao dissertar sobre os indígenas, Gilberto Freyre é extremamente etnocêntrico e os apresenta como povos atrasados, sem desenvolvimento técnico ou militar, chegando ao ponto de compará-los a crianças sem maturidade como se pode observar:
De modo que não é o encontro de uma
cultura exuberante de maturidade com outra já adolescente, que aqui se
verifica; a colonização européia vem surpreender nesta parte da América quase
que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e incipiente; ainda na
primeira dentição; sem os ossos nem o desenvolvimento nem a resistência das
grandes semi-civilizações americanas. (FREYRE, 2004: p. 158)
A incapacidade de defesa observada pelo autor chegava a tal ponto que não despertou nos conquistadores um desejo ou necessidade de extermínio, mas sim de aproveitamento dos sujeitos aqui encontrados. Para Freyre, “[...] não houve da parte dele [o indígena brasileiro] capacidade técnica ou política de reação que excitasse no branco a política do extermínio seguida pelos espanhóis no México e no Peru [...]”. (FREYRE, 2004: p. 159)
Não sendo necessário o extermínio
desses povos, pelo contrário, o processo de colonização das novas terras se
deu, a princípio, com recorrente união entre europeus e indígenas. Essas uniões
podem ser interpretadas desde os conhecidos acordos econômicos onde trocavam
bugigangas por produtos de origem tropical, principalmente o pau-brasil, até
casamentos, lícitos ou não, entre esses indivíduos. Sobre essa tendência à
mistura, o autor afirma:
Híbrida desde o início, a sociedade
brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto
às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural
que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos povos
atrasados pelo adiantado; no máximo de contemporização da cultura adventícia com
a nativa, a do conquistador com a do conquistado. Organizou-se uma sociedade
cristã na superestrutura, com a mulher indígena, recém-batizada, por esposa e
mãe de família; e servindo-se em sua economia e vida doméstica de muitas das
tradições, experiências e utensílios da gente autóctone. (FREYRE, 2004: p. 160)
Esse trecho explicita a idéia de democracia racial comentada anteriormente. Mas, ao mesmo tempo em que reconhece a influência da cultura indígena, o faz sob a visão do colonizador. A cultura nativa foi absorvida pela dominante, preservando alguns traços domésticos de suas manifestações. E é sobre essas manifestações cotidianas e principalmente caseiras onde Freyre aponta tais influências. Destaca, assim, o papel da mulher índia na preservação desses hábitos.
No restante do capítulo, o
autor busca identificar nos hábitos das populações caboclas do norte e do
nordeste do Brasil as reminiscências das antigas tradições indígenas. Ele
minimiza a influência do homem indígena na formação da sociedade brasileira.
Para ele, sua contribuição “[...] foi formidável: mas só na obra de devastação
e de conquista dos sertões, de que ele o guia, o canoeiro, o guerreiro, o
caçador e pescador [...]”. (FREYRE, 2004: p. 163)
Ainda quanto ao aspecto da
miscigenação, o indígena é apresentado como um ser propenso a uniões
exogâmicas, devido ser, de modo geral, também poligâmico. Por um lado, essa
característica ajudou na difusão da colonização, uma vez que muitos colonos se
uniram às índias. Para tanto, considere-se que, na maioria das vezes, era essa
a única opção aos europeus. Por outro lado, a poligamia foi uma das
características culturais mais combatidas pelos padres da Companhia de Jesus no
Brasil.
Da união do colonizador com
a mulher índia foi que surgiu o caboclo, o primeiro ser com características que
viriam a ser uma representação do brasileiro nortista. Por conta de seu papel,
Gilberto Freyre afirma que:
Da cunhã é que nos veio o melhor da
cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O
mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente e espelhinho no
bolso, o cabelo brilhante de loção ou óleo de coco, reflete a influência de tão
remotas avós. (FREYRE, 2004: p. 164)
Entre outras características
apresentadas de influência indígena no povo brasileiro está o totemismo e
possíveis superstições como o uso de amuletos da sorte. Como exemplo de tal
afirmação, Freyre destaca o uso predominante da cor vermelha entre os povos do
norte do Brasil. Na cultura indígena, pintar o corpo de vermelho protegia
contra os maus espíritos. Chegava-se inclusive a pintar os recém nascidos com
fins profiláticos, uma vez que se acreditava que as doenças eram causadas por
espíritos maus.
Pode-se citar também o uso
de plantas medicinais como herança dos costumes indígenas para o tratamento de
doenças. Limitou a influência, talvez, desse conhecimento profilático a relação
estabelecida pelos padres e os curandeiros e pajés, adotando os primeiros uma
política de intenso combate às figuras destes últimos.
Sob o aspecto da influência
dos jesuítas no processo de integração/absorção/destruição da cultura indígena,
podemos citar o combate à poligamia, como retro citado, a insistência ao uso de
roupas, e principalmente, o fim das práticas totêmicas e fetichistas. Os
jesuítas tentaram, pois, inculcar hábitos e vestimentas europeus aos indígenas:
O vestuário imposto aos
indígenas pelos missionários europeus vem afetar neles noções tradicionais de
moral e higiene, difíceis de substituírem por novas. É assim que se observa a
tendência, e muitos dos indivíduos de tribos acostumadas à nudez, para só se
desfazerem da roupa européia quando esta só falta largar de podre ou de suja.
Entretanto, são povos de um asseio corporal e até de uma moral sexual às vezes
superior à daqueles que o pudor cristão faz cobrirem-se de pesadas vestes.
(FREYRE, 2004: pp. 180-181)
Para essa transformação se
tornar realidade, fez-se necessária uma prática efetiva de controle e
vigilância. Para tanto, utilizou-se a figura dos pequenos índios, os curumins,
para levar os costumes ensinados pelos padres para dentro das habitações
indígenas. Assim, além da mulher, o pequeno índio também teve papel
preponderante no processo de “civilização” do gentio.
Desses curumins, Freyre
destaca a reminiscência dos jogos, das brincadeiras e das lendas. Dos medos de
espíritos e bichos da floresta. Dessas lendas, destacam-se algumas como o
curupira ou a caipora, bicho papão, etc., como se pode observar:
Outros traços de vida elementar,
primitiva, subsistem na cultura brasileira. Além do medo, que já mencionamos,
de bicho e de monstro, outros pavores, igualmente elementares, comum ao
brasileiro, principalmente à criança, indicam estarmos próximos da floresta
tropical como, talvez, nenhum povo moderno civilizado. (...) O brasileiro é por
excelência o povo da crença no sobrenatural: em tudo o que nos rodeia sentimos
o toque de influências estranhas; de vez em quando os jornais revelam casos de
aparições, mal-assombrados, encantamentos. Daí o sucesso em nosso meio do alto
e baixo espiritismo. (FREYRE, 2004: p. 212).
Assim, observamos que, para Freyre, a influência indígena se resume a aspectos cotidianos de nossa cultura, como os jogos de crianças, as brincadeiras de roda, alguns pratos de nossa culinária, em especial o uso da mandioca e do milho, e o gosto pelo banho, além de superstições herdadas das antigas práticas totêmicas.
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