Resumo de: MARX, Karl. A Questão
Judaica.
1ª Ed. São Paulo:Centauro, 2005.
A questão judaica, englobando os dois ensaios de Karl Marx, foi publicada em 1844 no primeiro e único dos Anais FrancoAlemães, em resposta aos seguintes artigos de Bruno Bauer dedicados ao tema: “A questão judaica”, publicado nos Anais Franco-Alemães de 17 a 29 de novembro de 1842, e “Sobre a capacidade de judeus e de cristãos atuais ascenderem à liberdade”, publicado nas Vinte e uma folhas de Georg Herwegh, em maio de 1843.
Esta obra vem extenuar as divergências de Marx com Bruno Bauer. Marx substitui a crítica filosófica por uma crítica de caráter mais político e social, ao passo que Bauer se mantém preso à concepção da filosofia crítica cuja ação acreditava-se ser capaz de engendrar profundas modificações na realidade humana.
No primeiro capítulo, Marx trata da emancipação desejada pelos judeus, e já inicia com o questionamento de Bauer sobre qual seria essa emancipação, ao qual responde de pronto: a emancipação civil, a emancipação política. Porém Bauer os contesta: Na Alemanha, ninguém está politicamente emancipado. Nós mesmos carecemos de liberdade. Como vamos, então, libertar-vos? Vós, judeus, sois egoístas quando exigis uma emancipação especial para vós, como judeus. Como alemães, devíeis trabalhar pela emancipação política da Alemanha; como homens, pela emancipação humana.
Ao pretender a emancipação do Estado cristão, o judeu exige que o Estado cristão abandone seu preconceito religioso. Por acaso ele abandona o seu? Tem, assim, o direito de exigir dos outros que abdiquem de sua religião? Como, então, resolve Bauer a questão judaica? Qual o resultado? Formular um problema é resolvê-lo. crítica da questão judaica é a resposta a esta formulação. E resultado, resumido, os seguinte: Antes de poder emancipar os outros, precisamos emancipar-nos.
Bauer exige, assim, que o judeu abandone o judaísmo e que o homem em geral abandone a religião, para ser emancipado como cidadão. E, por outro lado, considera a abolição política da religião como abolição da religião em geral. O Estado que pressupõe a religião não é um verdadeiro Estado, um Estado real.
Bauer incorre em contradições, por não trazer o problema para este nível. Apresenta condições que não se fundamentam na essência da própria emancipação política. Formula perguntas que não envolvem seu problema e resolve outros que deixam sua pergunta sem contestação. Ao se referir aos adversários da emancipação dos judeus, Bauer diz textualmente que "seu erro consistia somente em partir do pressuposto do Estado cristão como o único verdadeiro e de não submetê-lo à mesma crítica que dirigiam ao judaísmo" (p. 3). Verificamos, aqui, que o erro de Bauer reside em concentrar sua crítica somente no "Estado cristão", ao invés de ampliá-la para o "Estado em geral". Bauer não investiga a relação entre a emancipação política e a emancipação humana, fato que o faz apresentar condições que só se podem explicar pela confusão isenta de espírito crítico entre emancipação política e emancipação humana em geral. A pergunta de Bauer, dirigida aos judeus: "Tendes, do vosso ponto de vista, direito a aspirar à emancipação política?", opomos o inverso: "Terá o ponto de vista da emancipação política direito a exigir do judeu a abolição do judaísmo e, do homem em geral, a abolição da religião?"
A emancipação política do judeu, do cristão e do homem religioso em geral é a emancipação do Estado do judaísmo, do cristianismo e, em geral, da religião. De modo peculiar à sua essência, como Estado, o Estado se emancipa da religião ao emancipar-se da religião de Estado, isto é, quando o Estado como tal não professa nenhuma religião, quando o Estado se reconhece muito bem como tal. A emancipação política da religião não é a emancipação da religião de modo radical e isento de contradições, porque a emancipação política não é o modo radical e isento de contradições da emancipação humana.
O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre. E o próprio Bauer reconhece isto tacitamente quando estabelece a seguinte condição para a emancipação política: "Todo privilégio religioso em geral, incluindo, por conseguinte, o monopólio de uma igreja privilegiada, deveria ser abolido; se alguns, vários ou mesmo a grande maioria se acreditasse na obrigação de cumprir seus deveres religiosos, o cumprimento destes deveria ficar a seu próprio arbítrio, como assunto exclusivamente privado". Portanto, o Estado pode ter-se emancipado da religião, ainda que e inclusive, a grande maioria continue religiosa. E a grande maioria não deixará de ser religiosa pelo fato da sua religiosidade ser algo puramente privado.
A ascensão política do homem acima da religião partilha de todos os inconvenientes e de todas as vantagens da ascensão política em geral. O Estado como tal, anula, por exemplo, a propriedade privada. O homem declara abolida a propriedade privada de modo político quando suprime o aspecto riqueza para o direito de sufrágio ativo e passivo, como já se fez em muitos Estados norte-americanos. Hamilton interpreta com toda exatidão este fato, do ponto de vista político, ao dizer: "A grande massa triunfou sobre os proprietários e o poder do dinheiro". Acaso não se suprime idealmente a propriedade privada quando o despossuído se converte em legislador dos que possuem? O aspecto riqueza é a última forma política de reconhecimento da propriedade privada.
Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual. É óbvio que nos referimos à emancipação real, à emancipação prática.
A desintegração do homem no judeu e no cidadão, no protestante e no cidadão, no homem religioso e no cidadão, não é uma mentira contra a cidadania, não é a evasão da emancipação política; representa, isto sim, a própria emancipação política, o modo político de emancipação da religião. É certo que nas épocas em que o Estado político nasce violentamente, como tal, do seio da sociedade burguesa, quando a auto-emancipação humana aspira realizar-se sob a forma de auto-emancipação política, o Estado pode e deve ir até à abolição da religião, até sua destruição, assim como vai até à abolição da propriedade privada, das taxas exorbitantes, do confisco, do imposto progressivo, à abolição da vida, à guilhotina. A vida política trata de esmagar - nos momentos de seu amor próprio especial - aquilo que é a sua premissa, a sociedade burguesa e seus elementos, e a constituir-se na vida genérica real do homem, isenta de contradições. Só pode consegui-lo, todavia, mediante contradições violentas com suas próprias condições de vida, declarando permanente a revolução; o drama político termina, por conseguinte, não menos necessariamente, com a restauração da religião, da propriedade privada, de todos os elementos da sociedade burguesa, do mesmo modo que a guerra termina com a paz.
A contradição em que se encontra o crente de uma determinada religião com sua cidadania nada mais é do que uma parte da contradição secular geral entre o Estado político e a sociedade burguesa. A consagração do Estado cristão reside na abstração da religião de seus membros, quando o Estado se professa como tal. A emancipação do Estado em relação à religião não é a emancipação do homem real em relação a esta.
Por isto, não dizemos aos judeus, como Bauer: não podeis emancipar-vos politicamente se não vos emancipais radicalmente do judaísmo. Ao contrário, dizemos: podeis emancipar-vos politicamente sem vos desvincular radical e absolutamente do judaísmo porque a emancipação política não implica emancipação humana. Quando vós, judeus, quereis a emancipação política sem vos emancipar humanamente, a meia-solução e a contradição não residem em vós, mas na essência e na categoria da emancipação política. E, ao vos perceber encerrados nesta categoria, lhes comunicais uma sujeição geral. Assim como o Estado evangeliza quando, apesar de já ser uma instituição, se conduz cristãmente frente aos judeus, do mesmo modo o judeu pontifica quando, apesar de já ser judeu, adquire direitos de cidadania dentro do Estado.
Mas, se o homem, embora judeu, pode emancipar-se politicamente, adquirir direitos de cidadania dentro do Estado, pode reclamar e obter os chamados direitos humanos? Bauer nega esta possibilidade. "O problema está em saber se o judeu, como tal, isto é, o judeu que se confessa obrigado por sua verdadeira essência a viver eternamente isolado dos outros, é capaz de obter e conceder aos outros os direitos gerais do homem".
Segundo Bauer, o homem tem que sacrificar o "privilégio da fé" se quiser obter os direitos gerais de homem. Detenhamo-nos, um momento, a examinar os chamados direitos humanos em sua forma autêntica, sob a forma que lhes deram seus descobridores norte-americanos e franceses. Eu parte, estes direitos são direitos políticos, direitos que só podem ser exercidos em comunidade com outros homens. Seu conteúdo é a participação na comunidade e, concretamente, na comunidade política, no Estado. Estes direitos se inserem na categoria de liberdade política, na categoria dos direitos civis, que não pressupõem, como já vimos, a supressão absoluta e positiva da religião nem, tampouco, portanto e por exemplo, do judaísmo. Resta considerar a outra parte dos direitos humanos, os droits de l'homme, e como se distinguem dos droits du citoyen.
A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assim como as estacas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. Trata-se da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma. Por que, então, segundo Bauer, o judeu é incapaz de obter os direitos humanos? "Enquanto permanecer judeu, a essência limitada que faz dele um judeu tem que triunfar necessariamente sobre a essência humana que, enquanto homem, o une aos demais homens e o dissocia dos que não são judeus". Todavia, o direito do homem à liberdade não se baseia na união do homem com o homem, mas, pelo contrário, na separação do homem em relação a seu semelhante. A liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si mesmo.
O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente (à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta. Sociedade que proclama acima de tudo o direito humano "de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenues, du fruit de son travail et de son industrie".
Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de conceber o homem como um ser genérico, esses direitos, pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de suas propriedades e de suas individualidades egoístas.
Toda emancipação é a recondução do mundo humano, das relações, ao próprio homem. A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral.
Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas "forces propres" como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana.
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