As quatro ondas feministas e as vertentes do feminismo
De uma forma geral,
pode-se dizer que o objetivo do feminismo é uma sociedade sem hierarquia de
gênero: o gênero não sendo utilizado para conceder privilégios ou legitimar
opressão. Ou como disse Amelinha Teles na introdução de Breve história
do feminismo no Brasil, “falar da mulher, em termos de aspiração e projeto,
rebeldia e constante busca de transformação, falar de tudo o que envolva a
condição feminina, não é só uma vontade de ver essa mulher reabilitada nos
planos econômico, social e cultural. É mais do que isso. É assumir a postura
incômoda de se indignar com o fenômeno histórico em que metade da humanidade se
viu milenarmente excluída nas diferentes sociedades no decorrer dos tempos”.
No Brasil, o “assumir
essa postura incômoda”, o movimento feminista, teve início no século XIX, o que
chamamos de primeira onda. Nesta, as reivindicações eram voltadas para assuntos
como o direito ao voto e à vida pública. Um grande nome dessa onda é Nísia
Floresta. Em 1922, nasce a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que
tinha como objetivo lutar pelo sufrágio feminino e o direito ao trabalho sem a
autorização do marido.
A segunda onda teve
início nos anos 70 num momento de crise da democracia. Além de lutar pela
valorização do trabalho da mulher, o direito ao prazer, contra a violência
sexual, também lutou contra a ditadura militar. O primeiro grupo que se tem
notícia foi formado em 1972, sobretudo por professoras universitárias. Em 1975
formou-se o Movimento Feminino pela Anistia. No mesmo ano surge o jornal Brasil
Mulher, editado primeiramente no Paraná e depois transferido para a capital
paulista e que circulou até 1980.
Na terceira onda, que
teve início da década de 90, começou-se a discutir os paradigmas estabelecidos
nas outras ondas, colocando em discussão a micropolítica. Apesar de que, as
mulheres negras estadunidenses, como Beverly Fisher, já na década de 70,
começaram a denunciar a invisibilidade das mulheres negras dentro da pauta de reivindicação
do movimento. No Brasil, o feminismo negro começou a ganhar força no fim dessa
década, começo da de 80, lutando para que as mulheres negras fossem sujeitos
políticos.
As críticas trazidas
por algumas feministas dessa terceira onda, alavancadas por Judith Butler, vêm
no sentido de mostrar que o discurso universal é excludente; excludente porque
as opressões atingem as mulheres de modos diferentes, seria necessário discutir
gênero com recorte de classe e raça, levar em conta as especificidades das
mulheres. Por exemplo, trabalhar fora sem a autorização do marido, jamais foi
uma reivindicação das mulheres negras/pobres, assim como a universalização da
categoria mulheres tendo em vista a representação política, foi feita tendo
como base a mulher branca, de classe média. Além disso, propõe, como era feito
até então, a desconstrução da teorias feministas e representações que pensam a
categoria de gênero de modo binário, masculino/feminino.
Simone de Beauvoir já
havia desnaturalizado o ser mulher, em 1949, em O Segundo Sexo. Ao
dizer que “não se nasce mulher, torna-se”, a filósofa francesa distingue entre
a construção do “gênero” e o “sexo dado” e, mostra que não seria possível
atribuir às mulheres certos valores e comportamentos sociais como
biologicamente determinados. A divisão sexo/gênero funcionaria como uma espécie
de base que funda a política feminista partindo da ideia de que o sexo é
natural e o gênero é socialmente construído como algo que se impõe à mulher
assumindo assim um aspecto de opressão. Essa base fundacional dual foi o ponto
de partida para que Butler questionasse o conceito de mulheres como sujeito do
feminismo, realizando assim uma crítica radical a esse modelo binário e
empreendendo uma tentativa de desnaturalizar o gênero.
Pode-se dizer
que Problemas de gênero de Butler, é um dos grandes marcos
teóricos dessa terceira onda, assim como o Segundo sexo de
Simone de Beauvoir foi para a segunda. Segundo Harding, “as pesquisas
acadêmicas voltadas às questões feministas esforçaram-se inicialmente em
estender e reinterpretar as categorias de diversos discursos teóricos de modo a
tornar as atividades e relações sociais das mulheres analiticamente visíveis no
âmbito das diferentes tradições intelectuais”. Além disso, seu início foi ainda
marcado pelo compromisso acadêmico direcionado à causa da emancipação das
mulheres.
Faz-se importante
ressaltar que não existe apenas um enfoque feminista, há diversidade quanto às
posições ideológicas, abordagens e perspectivas adotadas, assim como há grupos
diversos, com posturas e ações diferentes.
A relação entre política e representação é uma das mais
importantes no que diz respeito à garantia de direitos para as mulheres e é
justamente por isso que é necessário rever e questionar quem são esses sujeitos
que o feminismo estaria representando. Se a universalização da categoria
mulheres não for combatida, o feminismo continuará deixando de fora diversas
outras mulheres e alimentando assim as estruturas de poder.
A partir dos anos 2000, começa a ganhar força e fazer parte do cotidiano o acesso à internet, dando início a um processo de reconfiguração e um impulso do feminismo que tem
alguns traços particulares, como o uso de redes sociais, horizontalidade,
altermundismo, etc. As novas formas de tecnologias de comunicação e
informação não são apenas um canal de comunicação e visibilidade dos
movimentos; as redes sociais digitais constituem um componente relevante para
compreender a constituição dessas organizações. As redes formam um território de
ação política em que se produzem disputas em torno do seu controle e é lá que novos
membros são formados.
A popularização da internet possibilita maior democratização na construção e
divulgação de ideias, na medida em que qualquer um pode criar textos e vídeos e
compartilhá-los nas redes sociais digitais. Assim, ideias feministas antes restritas a pequenos grupos tomam grandes proporções. Por isso a quarta onda do feminismo no Brasil, a qual estamos vivendo, é chamada por Felgueiras
(2017, p. 119) de ciberfeminismo, já que é formada por “jovens militantes que foram
criadas já na era digital e que compreendem o alcance desta ferramenta de
comunicação e sabem muito bem como utilizá-la”. A internet criaria uma comunidade
de mulheres ciberativistas e também proporciona a construção e divulgação de diversas
vertentes feministas, que serão abordadas a seguir.
Qual é o seu feminismo? Conheça as principais
vertentes do movimento
O
que é feminismo? Essa é uma daquelas
perguntas que não têm resposta definitiva. "Hoje vivemos os
'feminismos'. Sempre temos que falar no plural, pois este é um movimento
marcado por uma dinâmica horizontal", disse a pesquisadora Carolina Branco
de Castro Ferreira, em entrevista ao Brasil Post.
Fundadora
do site “Think Olga”, a jornalista Juliana de Faria diz acreditar que as redes
sociais hoje são muito importantes para a remodelação do feminismo, saindo do
sujeito mulher branca, de classe média, que luta por direitos civis para
inclusão das mulheres negras, da periferia, jovens, a diversidade de mulheres.
"O feminismo pode
ser o que quer que as pessoas façam dele, desde que condizente
com suas bases", disse ao jornal O
Globo.
Atualmente, no Brasil, os movimentos mais populares,
segundo a pesquisadora Carolina Branco Castro Ferreira, são: o feminismo negro,
o feminismo radical e o feminismo interseccional. Ainda existem o feminismo
trans e o feminismo liberal, que estamos "importando" dos Estados Unidos por meio da
cultura pop. É claro que há diversos matizes entre essas grandes vertentes. Mas
compreendê-las pode ajudar a responder aquela pergunta do início do texto.
Feminismo negro
"O
feminismo negro chega nos anos 80, concomitantemente com o fortalecimento do
movimento negro no Brasil, e depois as mulheres vão fazendo seus próprios
grupos", explica Carolina. Ele surge da ideia de que a mulher negra, por sofrer de uma dupla
opressão, não é representada por outros "feminismos".
"O profundo debate de raça e gênero é o que diferencia o feminismo negro
de outros feminismos", explicam Nênis Vieira, Xan Ravelli, Larissa
Santiago, Maria Rita Casagrande e Charô Nunes, do site BlogueirasNegras.org.
"Ele
inclui pautas como, no caso brasileiro, o genocídio da juventude negra e como isso tem
impactado as mulheres negras. Questões como a intolerância religiosa e
a valorização das religiões de matriz africana são também parte do debate
feminista negro que, acreditamos, não sejam pautas nem prioridades em outros
feminismos".
"A opressão da mulher negra não é mais importante
que a opressão da mulher branca, porém a mulher negra carrega outras questões
que não atingem diretamente a mulher branca. Questões essas que nos transpassam
além do gênero e que devem ser discutidas com um viés diferente.", afirma
Mara Gomes, administradora da página A mulher negra e o feminismo, para o
site blogueirasnegras.
Audre
Lorde, Suely Carneiro e Angela Davis são algumas das formuladoras desta
corrente.
Feminismo
radical
O
feminismo radical nasceu entre os anos 60 e 70, a partir das obras de Shulamith
Firestone e Judith Brown. Ao contrário do feminismo liberal, popular nos
Estados Unidos, que vê o machismo como fruto de leis desiguais, ou o feminismo
socialista, que vê no capitalismo a fonte da desigualdade entre gêneros, o
feminismo radical acredita que a raiz da opressão feminina são aos papéis sociais inerentes aos
gêneros.
A
partir dos anos 2010, com o boom do feminismo na internet, a vertente radical
foi retomada por garotas jovens, autodenominadas "radfem". "São
mulheres jovens, que reivindicam uma espécie de volta de um determinismo quase
que biológico: mulheres são aquelas que têm vagina, que têm
filhos, que têm ovário", comenta Carolina.
"As
radfem recuperam esse argumento dos anos 60 e 70 e adaptam a questões atuais.
Por exemplo: parte delas acha um absurdo que mulheres transsexuais se
auto-identifiquem como feministas, porque
elas nasceram biologicamente como homens", diz Carolina.
Feminismo
interseccional
O
feminismo interseccional é uma colcha de retalhos. Ele procura conciliar as demandas de gênero
com as de outras minorias, considerando classe social, raça,
orientação sexual, deficiência física... São exemplos de feminismo
interseccional o transfeminismo, o feminismo lésbico e o feminismo negro.
“A visão de que as mulheres experimentam a opressão em
configurações variadas e em diferentes graus de intensidade. Padrões culturais
de opressão não só estão interligados, mas também estão unidos e influenciados
pelos sistemas intersecionais da sociedade.” explica
Kimberlé Crenshaw que batizou o termo interseccional em seu livro,em 1989.
Mas
como tanta diversidade consegue caminhar na mesma direção? "É uma
tentativa de grupos de costurarem demandas, o que não é fácil. Algumas vezes,
na prática, é difícil operar politicamente", comenta Carolina. Algumas
das principais figuras do movimento intersec são as estudiosas Kimberlé
Crenshaw, Audre Lorde e bell hooks.
Este
também é o feminismo mais
receptivo à participação dos homens no movimento. "As
radicais, nos anos 70 e mesmo hoje são completamente contra, porque para elas
homens são opressores por natureza", explica Carolina, que se considera
uma feminista interseccional.
“Um
movimento que se pauta em aprendizagem com o outro é muito saudável e
enriquecedor. Pra mim é essencial que feministas brancas estejam a par do que
as mulheres negras estão discutindo, assim como pra mim é importante eu saber o
que acontece com as pessoas trans uma vez que eu sou cisgênero”, explica
a estudante de artes visuais Julia França. Se descobriu feminista aos 15 anos e
hoje, aos 19, trabalha como colaboradora no site Capitolina. “Se
o nosso feminismo não é pra todas essas mulheres, pra quem ele é?”
Transfeminismo
O transfeminismo surgiu como uma corrente voltada
apenas para as questões de pessoas trans — alguém que tem uma identidade de
gênero diferente daquela esperada pela sociedade em função do seu sexo
biológico. A falta de visibilidade e a exclusão no feminismo foram motivos para
a organização de uma estrutura própria.
Feminismo
liberal
O
objetivo das feministas liberais é assegurar a
igualdade entre homens e mulheres na sociedade por meio de reformas políticas
e legais. O feminismo liberal prega que as mulheres podem
vencer a desigualdade das leis e dos costumes gradativamente, combatendo
situações injustas pela via institucional e conquistando cada vez mais
representatividade política e econômica por meio das ações individuais. Por
isso, a ascensão de mulheres a posições em instituições como o congresso, os meios de comunicação e as lideranças de empresas são vitais para
esta visão do feminismo.
Mary
Wollstonecraft, Betty Friedan, Gloria Steinem e o filósofo John Stuart Mill são
alguns de seus formuladores.
Muito
recorrente no meio feminista, o termo “sororidade” é uma das reivindicações do
feminismo liberal, numa tentativa de unificar todas as mulheres
dentro um grupo forte e coeso. Só poderia querer fazer isso quem não tem
condições de analisar que as mulheres são plurais, que tem demandas diferentes,
e que dentro destas demandas, existem as reivindicações de classe contra o
capitalismo e sua elite, e dentro desta elite existem mulheres que beneficiam-se
da estrutura patriarcal e machista para manutenção dos seus privilégios, e
escolhem para mantê-los, e oprimir outras mulheres.
Por conta disto, muitas mulheres já perceberam algo
interessante nesta reivindicação de amor entre as mulheres como se fossem
irmãs: Esta tal sororidade é Seletiva.
Com a justificativa da “sororidade”, para evitar
“rivalização feminina”, pra evitar “brigas internas” e, basicamente, pra
colocar panos quentes em discussões, tornou-se impossível se criticar qualquer
posicionamento ou atitude (e, principalmente, a falta de um
posicionamento ou de uma atitude) de uma mulher — só por ela ser mulher. Isso
deu margem pro desenvolvimento de um pseudofeminismo (sim) extremamente individualista
e egoísta (mais do que já seria esperado de um “feminismo” liberal).
O feminismo é um movimento político. Não é sobre
autoidentificação. Não é uma cultura, não
é uma religião, não é uma ideologia. É um movimento social e político. Assim sendo,
é altamente desmerecedor
e desrespeitoso com as mulheres que lutam e lutaram durante
tantos anos pra construir esse movimento — por meio da academia, de política,
do direito, da mídia, da militância alternativa, da militância de base,
enfim — você achar que pode se declarar feminista e ficar por isso mesmo, sem
mexer um dedo pra
ler uma linha de teoria, sem mexer um
tendão pra fazer qualquer coisa de prática por
mulheres reais.
É por falta de coragem e de comprometimento que não conseguimos sair
dessa fase de feminismo liberal. E, por fim, é por falta de cobrança de atitude
que as coisas, quando mudam, se mudam, o fazem
muuuuito devagar… (Porque se você cobra, se você dá aquele puxão de orelha,
você é A Chata, A Arrogante, A Que Se Acha Melhor. Então, claro, ninguém quer
ser essa figura, até porque isso geraria ranço e isolamento).
Uma cultura de cobrança é necessária sim. Cobrança não é
tão negativa assim em 100% das vezes. Autocobrança e cobrança de nossas
companheiras e de nossas camaradas de luta. Cobrança pra que tenhamos responsabilidade com
o movimento de que dizemos participar. Cobrança pra que tenhamos mulheridade pra
assumir responsabilidades e tomar ações que nem sempre vão ser o que
pessoalmente queremos, mas que coletivamente nos beneficiarão.
E, até, um pouco de fé na deusa pra que nunca nos falte
autocrítica!
A página do facebook “Feminismo sem demagogia”, de vertente
marxista, afirma a reivindicação de que ao contrário de Sororidade, usemos o termo
camaradagem. Camaradagem significa confiar a própria vida a nossas e nossos
companheiros, e esta união dá se além do generos. Mas ela delimita para quem é
nossa solidariedade e para quem é o nosso máximo comprometimento, que é para
nossas companheiras de classe. Isso não significa de forma alguma que não
defenderemos as mulheres burguesas quando elas sofrerem machismo, isso
significa que nós temos conhecimento de que elas nem sempre estarão ao nosso
lado e muitas delas estarão contra nós, assumindo posição de exploração contra
as mulheres e opressoras.
Fontes:
https://medium.com/qg-feminista/ficar-inerte-n%C3%A3o-%C3%A9-feminista-e69d321838a6Artigo: A quarta onda feminista: interseccional, digital e coletiva https://alacip.org/cong19/25-perez-19.pdf
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