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quarta-feira, 29 de abril de 2020

Resumo: A Questão Judaica - Marx

Isolamento social causa nostalgia! E eu vim puxar do baú da minha nuvem (ah se essa nuvem existisse a mais tempo!) esse resumo de um dos clássicos de Marx, feito em 2015 na ocasião que cursava a disciplina Sociologia I - Marx, com a Profª Zuleide Ximenes Pontes. Essa sem dúvida foi uma das disciplinas que melhor aproveitei nesse curso!



Resumo de: MARX, Karl. A Questão Judaica.
1ª Ed. São Paulo:Centauro, 2005.

A questão judaica, englobando os dois ensaios de Karl Marx, foi publicada em 1844 no primeiro e único dos Anais FrancoAlemães, em resposta aos seguintes artigos de Bruno Bauer dedicados ao tema: “A questão judaica”, publicado nos Anais Franco-Alemães de 17 a 29 de novembro de 1842, e “Sobre a capacidade de judeus e de cristãos atuais ascenderem à liberdade”, publicado nas Vinte e uma folhas de Georg Herwegh, em maio de 1843.

Esta obra vem extenuar as divergências de Marx com Bruno Bauer. Marx substitui a crítica filosófica por uma crítica de caráter mais político e social, ao passo que Bauer se mantém preso à concepção da filosofia crítica cuja ação acreditava-se ser capaz de engendrar profundas modificações na realidade humana.

No primeiro capítulo, Marx trata da emancipação desejada pelos judeus, e já inicia com o questionamento de Bauer sobre qual seria essa emancipação, ao qual responde de pronto: a emancipação civil, a emancipação política. Porém Bauer os contesta: Na Alemanha, ninguém está politicamente emancipado. Nós mesmos carecemos de liberdade. Como vamos, então, libertar-vos? Vós, judeus, sois egoístas quando exigis uma emancipação especial para vós, como judeus. Como alemães, devíeis trabalhar pela emancipação política da Alemanha; como homens, pela emancipação humana.

Ao pretender a emancipação do Estado cristão, o judeu exige que o Estado cristão abandone seu preconceito religioso. Por acaso ele abandona o seu? Tem, assim, o direito de exigir dos outros que abdiquem de sua religião? Como, então, resolve Bauer a questão judaica? Qual o resultado? Formular um problema é resolvê-lo. crítica da questão judaica é a resposta a esta formulação. E resultado, resumido, os seguinte: Antes de poder emancipar os outros, precisamos emancipar-nos.

Bauer exige, assim, que o judeu abandone o judaísmo e que o homem em geral abandone a religião, para ser emancipado como cidadão. E, por outro lado, considera a abolição política da religião como abolição da religião em geral. O Estado que pressupõe a religião não é um verdadeiro Estado, um Estado real.

Bauer incorre em contradições, por não trazer o problema para este nível. Apresenta condições que não se fundamentam na essência da própria emancipação política. Formula perguntas que não envolvem seu problema e resolve outros que deixam sua pergunta sem contestação. Ao se referir aos adversários da emancipação dos judeus, Bauer diz textualmente que "seu erro consistia somente em partir do pressuposto do Estado cristão como o único verdadeiro e de não submetê-lo à mesma crítica que dirigiam ao judaísmo" (p. 3). Verificamos, aqui, que o erro de Bauer reside em concentrar sua crítica somente no "Estado cristão", ao invés de ampliá-la para o "Estado em geral". Bauer não investiga a relação entre a emancipação política e a emancipação humana, fato que o faz apresentar condições que só se podem explicar pela confusão isenta de espírito crítico entre emancipação política e emancipação humana em geral. A pergunta de Bauer, dirigida aos judeus: "Tendes, do vosso ponto de vista, direito a aspirar à emancipação política?", opomos o inverso: "Terá o ponto de vista da emancipação política direito a exigir do judeu a abolição do judaísmo e, do homem em geral, a abolição da religião?"

A emancipação política do judeu, do cristão e do homem religioso em geral é a emancipação do Estado do judaísmo, do cristianismo e, em geral, da religião. De modo peculiar à sua essência, como Estado, o Estado se emancipa da religião ao emancipar-se da religião de Estado, isto é, quando o Estado como tal não professa nenhuma religião, quando o Estado se reconhece muito bem como tal. A emancipação política da religião não é a emancipação da religião de modo radical e isento de contradições, porque a emancipação política não é o modo radical e isento de contradições da emancipação humana.

O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre. E o próprio Bauer reconhece isto tacitamente quando estabelece a seguinte condição para a emancipação política: "Todo privilégio religioso em geral, incluindo, por conseguinte, o monopólio de uma igreja privilegiada, deveria ser abolido; se alguns, vários ou mesmo a grande maioria se acreditasse na obrigação de cumprir seus deveres religiosos, o cumprimento destes deveria ficar a seu próprio arbítrio, como assunto exclusivamente privado". Portanto, o Estado pode ter-se emancipado da religião, ainda que e inclusive, a grande maioria continue religiosa. E a grande maioria não deixará de ser religiosa pelo fato da sua religiosidade ser algo puramente privado.

A ascensão política do homem acima da religião partilha de todos os inconvenientes e de todas as vantagens da ascensão política em geral. O Estado como tal, anula, por exemplo, a propriedade privada. O homem declara abolida a propriedade privada de modo político quando suprime o aspecto riqueza para o direito de sufrágio ativo e passivo, como já se fez em muitos Estados norte-americanos. Hamilton interpreta com toda exatidão este fato, do ponto de vista político, ao dizer: "A grande massa triunfou sobre os proprietários e o poder do dinheiro". Acaso não se suprime idealmente a propriedade privada quando o despossuído se converte em legislador dos que possuem? O aspecto riqueza é a última forma política de reconhecimento da propriedade privada.

Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual. É óbvio que nos referimos à emancipação real, à emancipação prática.

A desintegração do homem no judeu e no cidadão, no protestante e no cidadão, no homem religioso e no cidadão, não é uma mentira contra a cidadania, não é a evasão da emancipação política; representa, isto sim, a própria emancipação política, o modo político de emancipação da religião. É certo que nas épocas em que o Estado político nasce violentamente, como tal, do seio da sociedade burguesa, quando a auto-emancipação humana aspira realizar-se sob a forma de auto-emancipação política, o Estado pode e deve ir até à abolição da religião, até sua destruição, assim como vai até à abolição da propriedade privada, das taxas exorbitantes, do confisco, do imposto progressivo, à abolição da vida, à guilhotina. A vida política trata de esmagar - nos momentos de seu amor próprio especial - aquilo que é a sua premissa, a sociedade burguesa e seus elementos, e a constituir-se na vida genérica real do homem, isenta de contradições. Só pode consegui-lo, todavia, mediante contradições violentas com suas próprias condições de vida, declarando permanente a revolução; o drama político termina, por conseguinte, não menos necessariamente, com a restauração da religião, da propriedade privada, de todos os elementos da sociedade burguesa, do mesmo modo que a guerra termina com a paz.

A contradição em que se encontra o crente de uma determinada religião com sua cidadania nada mais é do que uma parte da contradição secular geral entre o Estado político e a sociedade burguesa. A consagração do Estado cristão reside na abstração da religião de seus membros, quando o Estado se professa como tal. A emancipação do Estado em relação à religião não é a emancipação do homem real em relação a esta.

Por isto, não dizemos aos judeus, como Bauer: não podeis emancipar-vos politicamente se não vos emancipais radicalmente do judaísmo. Ao contrário, dizemos: podeis emancipar-vos politicamente sem vos desvincular radical e absolutamente do judaísmo porque a emancipação política não implica emancipação humana. Quando vós, judeus, quereis a emancipação política sem vos emancipar humanamente, a meia-solução e a contradição não residem em vós, mas na essência e na categoria da emancipação política. E, ao vos perceber encerrados nesta categoria, lhes comunicais uma sujeição geral. Assim como o Estado evangeliza quando, apesar de já ser uma instituição, se conduz cristãmente frente aos judeus, do mesmo modo o judeu pontifica quando, apesar de já ser judeu, adquire direitos de cidadania dentro do Estado.

Mas, se o homem, embora judeu, pode emancipar-se politicamente, adquirir direitos de cidadania dentro do Estado, pode reclamar e obter os chamados direitos humanos? Bauer nega esta possibilidade. "O problema está em saber se o judeu, como tal, isto é, o judeu que se confessa obrigado por sua verdadeira essência a viver eternamente isolado dos outros, é capaz de obter e conceder aos outros os direitos gerais do homem".

Segundo Bauer, o homem tem que sacrificar o "privilégio da fé" se quiser obter os direitos gerais de homem. Detenhamo-nos, um momento, a examinar os chamados direitos humanos em sua forma autêntica, sob a forma que lhes deram seus descobridores norte-americanos e franceses. Eu parte, estes direitos são direitos políticos, direitos que só podem ser exercidos em comunidade com outros homens. Seu conteúdo é a participação na comunidade e, concretamente, na comunidade política, no Estado. Estes direitos se inserem na categoria de liberdade política, na categoria dos direitos civis, que não pressupõem, como já vimos, a supressão absoluta e positiva da religião nem, tampouco, portanto e por exemplo, do judaísmo. Resta considerar a outra parte dos direitos humanos, os droits de l'homme, e como se distinguem dos droits du citoyen.

A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assim como as estacas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. Trata-se da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma. Por que, então, segundo Bauer, o judeu é incapaz de obter os direitos humanos? "Enquanto permanecer judeu, a essência limitada que faz dele um judeu tem que triunfar necessariamente sobre a essência humana que, enquanto homem, o une aos demais homens e o dissocia dos que não são judeus". Todavia, o direito do homem à liberdade não se baseia na união do homem com o homem, mas, pelo contrário, na separação do homem em relação a seu semelhante. A liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si mesmo.

O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente (à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta. Sociedade que proclama acima de tudo o direito humano "de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenues, du fruit de son travail et de son industrie".

Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de conceber o homem como um ser genérico, esses direitos, pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de suas propriedades e de suas individualidades egoístas.

Toda emancipação é a recondução do mundo humano, das relações, ao próprio homem. A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral.

Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas "forces propres" como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Partidos Políticos e o Estado de Bem Estar Social

Ainda bem que nessa quarentena meu curso de mestrado está seguindo a todo vapor! Este trabalho é a tarefa nº 2 da disciplina "Ferramentas analíticas das Ciências Humanas" do Mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas da FLACSO - Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais. Este curso é semi-presencial, oferecido através da Perseu Abramo exclusivamente a filiados e filiadas no PT, estou gostando muito! Muitas leituras interessantes e que estão totalmente ligadas com o que estudei em Ciências Sociais na UFPA. A cada 15 dias tenho atividade, assisto as aulas em vídeo, posso tirar dúvidas no fórum da plataforma do curso, leio a bibliografia apontada na ementa e redijo a tarefa solicitada. Essa fazia parte do conteúdo de "Tópicos Introdutórios em Ciência Política II", com o seguinte comando:

"Esta unidade trata de diferentes formas de organização e reação da sociedade diante dos efeitos produzidos pelas formas de exploração do trabalho desde o advento do capitalismo: sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais e Estado de Bem-Estar Social. 
Escolha duas dessas formas de organização social/institucional e discorra sobre suas origens e mudanças. Como as relações entre elas aparecem na bibliografia? Como esses elementos ajudam a analisar os temas de suas transformações e declínio?"
Fiz o texto que encontra-se abaixo e fui avaliada com 10! 😊 Boa leitura!


Partidos Políticos e o Estado de Bem-Estar Social

É reconhecida pelos estudiosos a importância dos partidos políticos para pleno funcionamento de regimes democráticos, pois através deles é possível se estruturar a competição política, ou seja, a disputa dos interesses de cada classe. Suas origens remontam nas primeiras articulações no século XIX das agremiações de notáveis, que mantiveram sua existência através de partidos conservadores e liberais no século XX, como apresentado no texto de Osvaldo Amaral, que aborda a visão dos principais teóricos sobre o tema, tendo Robert Michels [1911] como um dos pioneiros na ciência política, que teoriza sobre a burocratização dos partidos políticos diante da “incapacidade das massas em se dirigir aliada às exigências técnico-administrativas de uma organização complexa como um partido político” (AMARAL, 2013, p.13). Bem como a obra Os Partidos Políticos (1980) de Maurice Duverger, em que o autor se destaca como um dos primeiros a tentar sistematizar a diversidade partidária, elaborando uma tipologia e esboçando uma teoria geral dos partidos políticos.
Neste sentido, tomando por base partidos da Europa Ocidental, Duverger fez análise comparativa destes combinando elementos históricos, ideológicos e organizacionais, construindo os tipos de partido, que são os partidos de quadro e os partidos de massa. O primeiro correspondente ao tipo que deu origens aos partidos, as agremiações de notáveis, que tinham como características centrais sua origem interna ao parlamento, não possuía claros critérios de adesão, descentralizada estrutura nacional e financiamento partidário que depende de alguns doadores privados. Os partidos de massa surgem com a expansão do sufrágio no final do século XIX e começo do século XX, ocasião em que adentra um grande contingente de pessoas na cena política, que levou também ao desenvolvimento dos partidos socialistas e comunistas, que integraram grandes contingentes de trabalhadores por estarem alinhados à concepção marxista de partido-classe. Nestes, as principais características são sua origem extraparlamentar, rigorosos requisitos de filiação, subordinação dos parlamentares ao partido e organização interna de alta intensidade. Por este estudo, Duverger define o partido de massa como modelo de partido que mais se adapta às condições impostas pela democracia moderna.
A partir de 1960 passa a ser observada transformações comportamentais e organizacionais de diversas agremiações da Europa Ocidental, em que o autor apresenta os estudos de Kirchheimer (1966) a respeito, que veio a sistematizar e propor um novo modelo para explicar essas novas características, representando uma inversão à hipótese de Duverger, e desenvolve o conceito de partido catch all. Para este:
A combinação entre crescimento econômico e amadurecimento do Estado de Bem-Estar provocou uma redução na polarização social e política, diminuindo a importância tanto da ideologia quanto das distinções de classe na cena partidária. Acompanhando as mudanças sociais mais amplas na Europa Ocidental, os partidos de massa estavam gradualmente transformando-se em agremiações diluídas ideologicamente, com apelos genéricos a todos os grupos sociais e cada vez mais voltadas para o sucesso eleitoral. (AMARAL, 2013, p.15).
Interessante correlacionar com o que Fiori apresenta em seu texto Estado do Bem-Estar Social Padrões e Crises (1997) sobre essas mudanças a partida da década de 60, destacando que “a nova esquerda em nome de um projeto de aprofundamento da ‘democracia participativa’ também viu no Estado de Bem-Estar Social uma peça central do imenso e anônimo aparelho de Estado responsável por um gigantesco trabalho de ‘cooptação’ e desativação da classe trabalhadora.” (FIORI, 1997, p.13)
O partido de tipo catch all, para Kirchheimer, tem como principais características: a) desideologização do discurso partidário; b) fortalecimento da liderança; c) declínio da importância da militância de base; d) apelo eleitoral pluriclassista; e) abertura para grupos de interesse variados (KIRCHHEIMER, 1966. In: AMARAL, 2013, p.15) .
Dentre essas transformações no período pós-guerra, que afetam as características dos partidos, vale ainda retornar ao texto de Fiori que trata dessas transformações no que tange a viabilidade e o sucesso dos welfare contemporâneos, e merece destaque duas de suas grandes pilastras identificadas pelo autor, que é o “clima” de solidariedade nacional que se instalou nos países depois da guerra seguida da solidariedade supranacional gerada por este novo quadro geopolítico, e o:
Avanço das democracias partidárias e de massa que, pelo menos nos países centrais onde de fato pode-se falar de welfare , permitiu que a concorrência eleitoral aumentasse o peso e a importância das reivindicações dos trabalhadores e dos seus sindicatos e partidos e dos demais setores sociais interessados no desenvolvimento dos sistemas de welfare states. (FIORI, 1997, p.5)
Fiori relaciona o que é possível concluir com mais consistência sobre a explicação da construção e expansão do Estado de Bem-Estar Social, que são:
i. a natureza, forma e ritmo do desenvolvimento econômico; ii. o grau, intensidade e organicidade da mobilização da classe operária; iii. o grau de avanço do desenvolvimento político-institucional; iv. a extensão ou impacto do efeito de difusão das inovações ocorridas nos países paradigmáticos; v. a forma peculiar e a intensidade em que se desenvolve a luta política envolvendo os partidos que tradicionalmente representaram o mundo do trabalho. (FIORI, 1997, p.11)
Retornando à dinâmica dos partidos e aos argumentos do texto de Amaral, o mesmo apresenta os estudos de Katz e Mair (1995) que identificaram a emergência de um novo modelo de partido nas democracias contemporâneas, o partido cartel, que seria uma linha evolutiva do partido de quadros, massas e catch all.
É importante tratar do partido cartel justamente por ter como característica suas relações com o Estado, que acabam sendo essenciais para sobrevivência da organização, articulando a aquisição de recursos necessários para sua sobrevivência, que Amaral destaca como fatores indicativos dessa dependência a garantia de acesso aos meios de comunicação de massa, a manutenção de assessores de parlamentares e de membros do Executivo, as atividades e organização partidária moldadas por regulamentações estabelecidas pelo Estado, a legitimidade que o Estado dá aos partidos quando seus membros ocupam os cargos públicos e a patronagem partidária, que para Mair é a utilização de recursos estatais pelos partidos para distribuição de incentivos seletivos para seus membros ou seus apoiadores.
Essa aproximação com o Estado traz consequências consideráveis para a prática democrática e a disputa interpartidária, pois “durante a prevalência dos modelos de partidos de massa e catch all, as agremiações agiam como intermediárias dos interesses da sociedade civil junto ao Estado. Agora, é o Estado que atua como intermediário entre os partidos e a sociedade civil.” (MAIR, 1994. In: AMARAL, 2013, p.18).
Amaral, seguindo a lógica dos autores que aborda em seu texto, afirma que “o processo de cartelização dos sistemas políticos tem consequências perigosas para o próprio regime democrático, pois os partidos não conseguem mais preencher o espaço de representação e agregação de interesses, abrindo lacunas para lideranças populistas e agremiações ‘antipartidos’.” (KATZ e MAIR, 2009. In: AMARAL, 2013,p.28).
Porém, segundo sua análise, os autores afirmam que não há até o presente nenhuma forma de organização política que se mostre superior aos partidos políticos no sentido de viabilizar a competição política nas democracias contemporâneas e que estas agremiações conseguiram no decorrer da história adaptar-se e superar os desafios encontrados de forma impressionante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Oswaldo. O que sabemos sobre a organização dos partidos políticos: uma avaliação de 100 anos de literatura. Revista debates, Porto Alegre, v.7, n.2, 2013.

FIORI, José Luís. Estado do Bem-Estar Social: Padrões e Crises. São Paulo: IEA, 1997. Disponível em: www.iea.usp.br/artigos

segunda-feira, 27 de abril de 2020

A monogamia sempre me venceu

Sou uma preta doida. Me apelidei assim porque desde a adolescência era chamada de doida, seja por minhas gaiatices, por ser impulsiva, atrevida, por não concordar com as caixinhas impostas pela sociedade, pelos meus fetiches, desejos ou por não tolerar injustiças e me fazer de doida mesmo! Doida é quem não está dentro do “normal”, não se sente contemplada com o padrão oferecido e decide transgredir, e apesar de não ter muita leitura quando era mais jovem sobre relacionamento não monogâmico, eu insistia em ser essa doida.

Mas num piscar de olhos a doida passa a ser puta, vagabunda, como são chamadas as mulheres que rompem com o patriarcado. A puta é considerada o mais baixo escalão de mulheres, sendo que elas ajudaram a sustentar por séculos o contrato monogâmico de forma diferenciada e privilegiada aos homens, enfim, o capitalismo racista patriarcal se beneficia de nosso trabalho, putas ou não, por isso tentam nos calar.

Esse tempo de isolamento social tem me feito revisitar muitas histórias, em especial os afetos, as relações. Me entendi e assumi como não monogâmica recentemente, mais precisamente em 2017 quando acabou meu casamento também por isso. Eu já me sentia assim, mas não conhecia nenhuma relação fora da monogamia de uma forma assumida, foi buscando leituras a respeito pra tentar entender isso que sempre senti, mas não sabia dar nome e se já tinha nome, que cheguei às reflexões sobre poliamor e não monogamia. Até então eu só tinha conhecido o swing e o “meio liberal” (acho uó esse nome “liberal”, mas tudo bem! rs Isso dá outro texto).

Nessas recordações, lembrei como em várias relações o fato deu ser assim, “doida”, me levaram a ser preterida. Sei que existem outros motivos, certamente, mas isso é outro assunto. Sou sempre considerada maravilhosa, inteligente, gostosa, divertida, que conversa bem, transa bem, uma boa companhia, mas que no final não vai casar e nem vai ser exclusiva, monogâmica. Pra alguns vira até festa, se encantam com a possibilidade da liberdade, se divertem, conversam muito empolgados a respeito, compreendem e concordam com meus posicionamentos, mas acabam optando pelo convencional, pela monogamia, e quando encontram alguém que vai lhes oferecer isso, eu sou descartada. Podem até sentir falta de mim, saudade, mas eu não sou o tipo de mulher pra se ter uma relação “séria” e fica melhor me ter como amiga. Fora os que já optaram pela monogamia, mas quebram seus contratos monogâmicos só pra matar saudades da “amiga” aqui.

É bem aí que paira um problema, a não monogamia para muitos não é pra ser levada a sério, nem é vista como relação sequer, eu mesmo não a enxergava, ou só um lance passageiro, uma onda, poder fazer o que quiser que a pessoa não vai se magoar, afinal é tudo livre, acha que ela vai compreender e assim acaba por não ter responsabilidade afetiva alguma com quem se relaciona dessa forma. Já parei pra pensar se de alguma maneira não tenho culpa (mulher sempre buscando culpa, né?) por não demarcar melhor isso com quem me envolvo, mas sempre deixei tudo muito bem transparecido, costumo ser verdadeira comigo e com quem me envolvo esperando de volta essa recíproca. Mas o que percebo hoje é a dificuldade em encontrar afetos que estejam afinados da mesma maneira que eu sobre a não monogamia, e decididos também a viver esse arranjo. Podem até achar bacana, compreendem bem, trocam ideia a respeito, mas não é isso que querem, a monogamia sempre me venceu porque no fim é isso que a maioria deles busca, conforto e exclusividade, sendo que muitas vezes eles nem oferecem isso de volta, aos homens sempre foi facultado ser infiel e sempre lhes doeu muito a alcunha de “corno”, ser corna não doi tanto quanto, pois assim fomos socializadas, a suportar caladas todas as adversidades em nome do único amor da sua vida, verdadeiro e eterno.

Eu sempre brinco que a única coisa que ganhei sendo monogâmica foi chifre, e fui monogâmica porque de fato não sentia desejo por outros homens, isso acontece na não monogamia também, mas ficava me perguntando se seria assim sempre, se só sentiria desejo por ele e mais ninguém. Nunca me vi apaixonada e transando com um único homem pelo resto da minha vida! Falei isso pra um amigo esses dias e ele me disse que acha que a maioria das mulheres pensam assim, só não têm coragem de assumir. E é isso mesmo, tem que ter muita coragem! Na sociedade machista que vivemos, muitas mulheres pagam com a vida por esse desejo, são mortas pelos parceiros por quebrar a regra, por querer viver outros afetos, ou se assumem logo de cara isso, como eu, pagam o preço da solidão, pois não somos relações sérias, somos sexo de ocasião, bem como carinho e atenção de ocasião.

É como se não tivesse nome o que eu quero. Eu não desejo ter uma relação assumida pra geral, de envolver família, morar junto então, nem pensar! Ter que expor minha filha a homens que eu jamais irei obrigá-la a tratar bem ou ter relação, enfim, mas quero ter afetos que eu possa conversar, dar uma volta, transar muito, saber como está, contar como estou, coisas gostosas de fazer a dois. Daí podem me dizer: ah, mas assim tu só queres a parte boa! Sim, mas qual é o crime de só querer coisas boas e descomplicar as coisas? Hehe! E quem disse que a não monogamia também não tem seus problemas? Tem vários, inclusive a desconstrução de conceitos e comportamentos da monogamia que ainda reproduzimos! Mas este é o nome que achei pro que eu quero, relações não monogâmicas é o caminho que mais condiz com o que busco e amadureci sobre relacionamentos.

Creio também que não seja impossível encontrar quem pense como eu e deseje ter relações não monogâmicas, é bom ter esperança! Importante ter certeza do que se quer para não se enganar em relações que não serão recíprocas nesse sentido. É muito difícil, eu sei, mas eu pago o preço de ser quem eu sou e não precisar fingir que sou algo só pela necessidade de ter alguém, eu já fiz isso e não é nada agradável! O preço de ficar sozinha hoje me sai muito mais em conta, quem sabe um dia o acaso me agracia e o padrão monogâmico não me vença mais, que eu seja amada, desejada e respeitada justamente por ser assim. Hoje me sinto mais feliz e segura em saber o que quero, lado maravilhoso de envelhecer! Sou muito agradecida por todas que se dedicam a refletir e escrever sobre não monogamia e poliamor, pois é isso que importa, buscar ser feliz entendendo que a felicidade não está nas caixas prontas, existe uma infinidade de possibilidades e o ser humano é muito diverso, ainda bem!

Que sigamos na luta pela nossa felicidade, desmontando padrões e enfrentando o status quo, é dureza, mas certamente é melhor que passar uma vida inteira se enganando e se frustrando. Muitas mulheres passaram uma vida sem saber o que é ser dona de seus corpos e seus desejos, não podemos mais permitir isso! Vamos seguir lutando para que todas as mulheres sejam livres e donas de seus destinos, permanecendo vivas por suas escolhas! O amor é livre, assim como nossos corpos e individualidades!
Viva o amor! Viva a liberdade!

Boa sorte e força na vida!

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Afetos e desafetos na quarentena


Este texto é um desabafo, então peço carinho na sua leitura. Foram meses, talvez anos me queixando sozinha por não ter um afeto decente, e mesmo passando a  compreender os motivos que me levam a estar assim, isso não deixava de ser triste. Aí mora o perigo, pois muitas vezes a carência nos leva a caminhos muito tortuosos... mulher negra, livre, não mono então, nem se fala! Parece território de ninguém! Minha carne é a mais barata, não merece valor, nem respeito. Já chorei muito por isso, quero tentar não mais.

Quando começou o isolamento social por conta da pandemia de covid-19, pensei: Agora sim! Vou amargar ainda mais essa minha condição de solidão! Porque sem quarentena já tava ruim de arrumar algum afeto, imagina agora? Mas essa foi só uma das várias angústias do confinamento, pensar em não poder ver minha filha sabe lá até quando e no caos social que se aproxima, genocídio da população pobre em nosso país, aumento do desemprego e pobreza, com certeza me consumiram muito mais!

Mas passado esse primeiro impacto de susto com o novo e tentando me adequar à rotina de poucos contatos físicos, me veio esse momento de mais serenidade, de deixar o barco correr e não sofrer por antecipação. Tentar aproveitar bem o que tenho e viver cada momento com qualidade, mesmo que seja dentro de casa o tempo inteiro. Hoje as redes sociais nos aproximam muito mais,  inclusive são elas agora responsáveis por grande parte de nosso contato. Comentava com minha comadre que se ela morasse aqui em Belém agora eu iria falar com ela da mesma maneira como estou agora falando com ela na Itália, que aprendemos de bem antes da quarentena a lidar com as distâncias e mantermos vivo nosso afeto. Então chega o momento de usufruir dessa vantagem e não somente demonizar as redes, pois como tudo na vida, se não soubermos dar um limite, acaba sendo nocivo.

Tempo para refletir e escrever, isso tem sido maravilhoso! Estudar, ler mais, estudar da forma que eu queria e não conseguia, e que me frustrava tanto por não conseguir. Nessas reflexões e estudos, passei a olhar mais pra dentro de mim e agora pra essa tristeza por falta de afetos, ressaltando que de afetos não falo só de família e amizade, essas estão comigo sempre, com pandemia ou sem pandemia, perto ou longe, bem como dariam um outro texto, mas sim dos afetos e relações que envolvem sexo. Sexo sempre nos foi colocado como pecado, algo sujo, proibido, errado ou também como algo muito íntimo, intenso, que só pode acontecer com quem “merece” ou que é necessário manter “fidelidade” com quem se faz sexo para haver respeito, enfim, essas lógicas moralizantes e monogâmicas que sempre vão dar em tretas. Inclusive a vida sexual é uma das problemáticas desse momento, por impulso meu de gostar demais de sexo, no começo pensei que isso seria um problema muito maior para quem está sem um relacionamento fixo como eu, mas quem tem seus namoros, casamentos, casos e acasos também estão encontrando seus problemas. Tomara que todos busquem e tenham chance de buscar os melhores caminhos, assim como eu estou aqui refletindo sobre os meus afetos.

E sobre eles eu fico aqui lembrando dos fracassos, do quanto já me fudi na vida e mesmo assim insisto em me inserir em relações que vou me fuder, pelo simples fato de querer me apaixonar, de sentir paixão, como se fosse uma adicção querer viver esse estado. Ou não, talvez também só vontade mesmo de ter relações bacanas,  recíprocas, amorosas, todas nós buscamos. Mas chega um momento que a gente já coleciona tantas feridas que é melhor repensar os caminhos desses vícios e carências. Nós mulheres estamos suscetíveis à violência nesta sociedade machista e somos submetidas a diversos abusos, precisamos sempre nos defender, infelizmente. As leituras sobre solidão da mulher negra passaram a fazer todo o sentido e elas também me auxiliam na busca de minorar e não me culpar por essas frustrações.

Mas como defesa, penso que preciso saber aproveitar o que tenho e o que recebo, sem precisar ter que me dar demais pra receber algo, ou por vezes nada. Quero levar tudo na mesma medida, se não tem afeto, não tem, se tem cuidado, atenção e me dá, eu dou. E ser for demais, bem, se for muito, já fico um pouco nervosa, porque o que é demais me abusa também!

E com o passar dos dias acredito que todos foram também repensando seus afetos, e alguns até surgiram, afetos que eram desafetos, afetos que estavam se construindo, afetos que eu julgava ter ficado no passado. Sinal de que pelo menos algo de bom eu deixei pra ser reconsiderada neste momento, e que ótimo! Como se a vida desse outra chance pra fazer as coisas melhores, curtir coisas boas, mesmo na distância, não se sabe até quando. E por mais que eu saiba que fui ferida muitas vezes, também tenho consciência da minha responsabilidade por ter chegado a certos momentos, sem tornar isso uma autoculpabilização, sem desconsiderar o contexto de opressão a que estou submetida. A necessidade do momento em não fazer a rancorosa, me abrir um pouco,  relaxar, aproveitar, mas sem perder a noção, ter limites.

Importante encontrar esse ponto de equilíbrio para se preservar e evitar as mágoas também, eu poderia ter evitado algumas, inclusive. Sei que não ficarei imune de escrotices eventuais, mas agora vou procurando ser mais ciente dos terrenos onde piso, ter certeza e não perder de vista o que eu quero e o que o outro quer, essa falta de diálogo e honestidade sobre os quereres nos leva a criar falsas expectativas. Tentar desconstruir um pouco dessa “Disney” de romance que constroem na cabeça das mulheres e que são responsáveis também por essas expectativas, de saber amar e curtir os afetos cada um no seu tempo e na sua medida, sem exageros, com tranquilidade. Esse tempo de caos pede serenidade para o enfrentamento, pra nossa saúde mental, afetiva, em saber aproveitar o que se apresenta, sem angústia de futuro, cada vez mais foco no presente, nesse dia, nesse agora, com a certeza de que nada é eterno, inclusive os afetos, que podem virar sim desafetos se o entendimento não for possível, isso é normal, não é o fim, é o que tem pro momento. Pode ser até que isso mude, ou não, mas não precisa mais consumir minha existência!

Que venha cada dia, único como deve ser, não preciso também perder a intensidade, pelo contrário, eu posso ressignificá-la a ponto de não me machucar e seguir bem. Minha intensidade está aqui, no que faço, no que penso, no que ajo. Não existe felicidade plena somente nesses afetos, existe também a felicidade de estar aqui em paz, sozinha em casa, podendo curtir demasiadamente e sem interrupções a mulher que sou hoje. Quero ser melhor pra mim, mais sagaz, inteligente, talentosa, gostosa, madura e vou me dedicar a isso seguindo minhas leituras feministas, meus estudos em ciência política, cuidando melhor da saúde, do meu corpo, da estética, enfim, de minha auto estima, que vejo como determinante nessas questões de humilhação por afetos. Há um mundo de ferramentas que posso lançar mão pra isso, e tenho consciência dos pequenos privilégios que tenho e que me permitem isso. Quero ser melhor não mais pros outros, deixar um pouco de me entregar loucamente à luta contra as opressões que não incomodam só a mim, mas o coletivo. Quero seguir pensando no coletivo, mas cuidando mais de mim, e ganhando carinho dos meus afetos, porque não? Se tem, eu vou querer! Mas me dando na mesma medida. E se não tem, não vou mais sofrer!
Só o que me entristece por agora é não saber quando isso tudo vai acabar e poder ficar com minha filha, mas vou distraindo a mente por aqui e por acolá pra não pensar nisso. Agradeço a quem me ajuda!

Essa vida
Ora um sopro
Por vezes longínqua
Num caminho nunca eterno
Sem volta
Sofrida
Mas que alegria te dá
Na beleza das coisas simples
Que a gente saiba te valorizar
Vida.