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quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A solidão é minha única via

Tem momentos que me vejo triste, tão triste... é normal, pois que na vida não é possível a felicidade constante. Assim como tenho um montão de motivos para estar feliz, pra sorrir, também outros inúmeros motivos para entristecer. Em algum momento a tristeza vai chegar, é preciso estar preparada pra esse momento, pra que não venha tomar um espaço pra além da sanidade.

Me entristeço com a solidão, queria um colo e um bom sexo agora, não posso ter. Sinto um tesão enorme depois que estudo, após horas de leituras e escritas, um bom sexo cai bem... mas não tenho ninguém, me sobra a tristeza. Não sei se é mais triste isso ou ter alguém e mesmo assim não ter sexo, acho que ambos são tristes, tristezas diferentes.

A solidão é minha única via, caminho certo para evitar aborrecimentos, violência, desdém, abusos. A solidão como arma política. Tem um fanzine sobre isso quando a gente faz a busca, de Marcela Lagarde. O medo da solidão é impeditivo na construção de autonomia, porque desde pequenas nos formam um sentimento de orfandade e dependência, colocando a solidão como algo negativo. Mas foi a solidão que me ensinou a me amar e a dizer não ao que não preciso, ao que não quero e não é bom para mim, a não mendigar mais afetos. Talvez não alcance tanto a autoestima, pois por vezes entendo a solidão como preterimento, por não ser uma pessoa bonita e interessante. Interessante sei que sou, mas bonita nem tanto, estou fora dos padrões vigentes, acho que o estigma de “preta feia” nunca deixou de me acompanhar desde a adolescência, aprendi a conviver com ele e sei que deve ser um trauma a vencer.

Acho que não sei mais flertar, na verdade nunca soube, já levei tantos foras que tenho preguiça de arriscar mais um, e a solidão me acompanha assim, pois se não me lanço é que nada cai na minha rede. Já fui muito lanceira, me diverti muito, mas tbm me lasquei igual. Estou inerte, paralisada. A solidão da mulher negra se faz real para mim. Negra e mãe, além de tudo feminista, dona de si, eles não querem bancar.

E elas? Pq não falo delas? Pq tbm não aparecem. Quem sabe um dia eu viva algo bem inusitado e diferente, que me faça rever tudo isso, não sei, melhor não contar com nada... cansei de viver de sonhos e ilusões, de contos de fadas, agora eu sigo a realidade e minha realidade é essa, solidão de uma mãe preta cansada de sofrimentos e carente de cuidados, de afeto, de carinho e pq não, de sexo. Quem poderia cuidar de mim pelo menos um pouquinho? Não sei! Eu só sei é que não posso contar com isso e preciso seguir me cuidando, é o que me resta. Hoje entendo que não posso mais me escravizar em relações ruins pra suprir essa carência, e nem sucumbir aos contos encantados da metade da laranja e complementação, não se trata disso. É só o bom desejo de contato e trocas de energias que não são permitidos a mim, a nós, o afeto nos é negado e as relações saudáveis são uma loteria, assim se dá minha sentença nesse viver.

E tem sentenças pesadas para mulheres trans, gordas, com deficiência, idosas, e a cor negra intensifica a opressão. Lutar também é minha única via, para que essa realidade se transforme, que não sejamos mais inferiorizadas, mal tratadas, desrespeitadas, desprezadas. Somos humanas, sociáveis, cheias de energia, também merecemos amor e afeto sadios, satisfatórios, em diversas composições, acordos, cores e sabores! 

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Os impactos da política fiscal nas políticas sociais para o desenvolvimento e desigualdade social no Brasil

Esse texto foi apresentado na avaliação final da disciplina Teoria e Prática em Políticas Públicas, do Mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas que estou cursando na FLACSO - Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais em parceira com a Fundação Perseu Abramo. Gostei bastante do resultado, pois explica os rumos do desenvolvimento do nosso país pelo prisma das políticas sociais e a influência da política fiscal, fazendo compreender porque chegamos ao estado das coisas atuais.

Os impactos da política fiscal nas políticas sociais para o desenvolvimento 
e desigualdade social no Brasil

Ana Carla Tavares Franco

Quando se pensa em perspectiva ampliada o desenvolvimento de um país se abrange para além do campo econômico, incluindo elementos da política, do social e ambiental. O Estado é o organismo que opera esse processo e a sustentação do desenvolvimento nacional se ancora nas políticas sociais, que possuem papel estratégico para enfrentar situações conjunturais adversas e criar bases para construção de uma nação econômica e socialmente mais forte e democrática, por meio da ampliação da justiça social, favorecimento do crescimento e da distribuição de renda.

A política social, como parte das ações do Estado para o desenvolvimento do país, é uma das fontes de influência sobre o processo de desenvolvimento e elemento irradiador de uma série de relações e dependências devido a sua diversidade. De acordo com Jorge Castro (2012):

A concepção sobre a política social sustenta-se no fato de que ela, em seu estágio mais avançado, se faz presente mediante complexos esquemas de distribuição de renda, produção e provisão de bens e serviços, distribuição de ativos patrimoniais, aplicando significativas parcelas do Produto Interno Bruto (PIB) além de regular alguns setores do mercado e empregar expressiva parcela da força de trabalho do país. Em seu desenrolar, essas políticas afetam a situação social dos indivíduos, famílias e grupos sociais, induzindo melhorias na qualidade de vida da população e, ao mesmo tempo, dadas suas dimensões, alteram a economia e a autonomia de um país, o meio ambiente e o próprio patamar de democracia alcançado, tornando-se, assim, elemento fundamental para o processo de desenvolvimento nacional. (p.1012)

Ainda no entendimento de Jorge Castro (2012) a política social trata-se de “um conjunto de programas e ações do Estado que se concretizam na garantia da oferta de bens e serviços, nas transferências de renda e regulação de elementos do mercado.” (p.1014), buscando realizar dois objetivos conjuntos que são a proteção social e a promoção social.

A proteção social dos cidadãos está ligada à seguridade social, que se baseia na ideia de forçar a solidariedade aos indivíduos, famílias e grupos em determinadas situações de dependência ou vulnerabilidade, como uma pessoa acidentada e incapacitada de trabalhar, vulnerabilidade de crianças e idosos, situações que impendem o ganho do próprio sustento em decorrência de fatores externos alheios à vontade do indivíduo. A promoção social se compreende como resultante da geração de oportunidades, igualdades e resultados para os indivíduos ou grupos sociais. A expansão de bens e serviços sociais são a materialização da geração de igualdades, principalmente com escolarização e acesso à saúde, em conjunto com políticas públicas como de inclusão produtiva de diversos tipos, nas cidades e no meio rural. Os melhores resultados serão alcançados ao conseguir atingir as populações mais pobres com bens e serviços de boa qualidade.

Deste modo, o formato e amplitude das políticas sociais de proteção e promoção social, dada as condições históricas estruturais, situação e contexto presente de cada país, seus resultados vão influenciar diretamente na direção tomada pela política social, que podem resultar na ampliação da justiça social e coesão social. Quando o gasto autônomo com políticas sociais se torna relevante para o ritmo de expansão da atividade econômica, estabelece-se uma determinada conexão entre essas políticas e os fatores econômicos, pois o gasto público com políticas que permitem a ampliação do sistema de garantia de renda, gerando determinado tipo de distribuição de renda, altera o padrão de consumo de indivíduos, famílias e grupos, com capacidade de criar um amplo mercado interno de consumo.

Em relação às questões ambientais, Jorge Castro (2012) afirma que:

a política social pode e deve cumprir papel relevante quando da elaboração e implementação de suas políticas, buscando a recuperação e preservação do meio ambiente como critério para desenho de próprias ações. Em contrapartida, os problemas ambientais, quando de suas ocorrências, atinge fortemente as populações mais pobres, forçando ainda mais a necessidade de ampliação das políticas socais. (p.1017)

No Brasil, a política social chama a atenção pela dimensão de seu conjunto, sendo centenas dos mais diferentes tipos de benefícios ofertados pelas diversas políticas públicas de proteção e promoção social. As políticas de garantia de renda (destaque para o Programa Bolsa Família) e de garantia de oferta de bens e serviços sociais (destaque para inclusão de grupos populacionais cada vez maiores nas escolas e universidades, aperfeiçoamento do SUS, políticas de habitação e saneamento como o Programa Minha Casa, Minha Vida) envolvem expressivos gastos públicos pelo aparato do estado, e a política de regulação poucos recursos, que se baseia “na fixação de normas que regulem o comportamento dos agentes econômicos privados e públicos – um exemplo de mecanismo regulador é o controle de qualidade sobre a produção e a comercialização de medicamentos, alimentos, etc.” (CASTRO, 2012, p.1022).

Manter esse conjunto de políticas exige a mobilização de recursos fiscais compatíveis e no Brasil vem se alterando significativamente o patamar dos gastos sociais desde o final dos anos 1980, e para poder fazer frente às despesas geradas pelos serviços e benefícios ofertados a responsabilidade pública no seu financiamento foi expandida de forma significativa a partir da Constituição Federal de 1988, com novo arranjo das relações federativas descentralizando as responsabilidades e os recursos, reduzindo à dependência em relação à União.

Os recursos para viabilizar as políticas sociais estatais dependem de tributos e deste modo ficam à mercê do sistema tributário e à política fiscal adotada. Em nosso país, o sistema tributário está configurado de modo a limitar a capacidade das políticas sociais em alterar a realidade social, pois:

mesmo que as políticas sociais protejam os cidadãos mais vulneráveis, seus efeitos redistributivos serão parcialmente comprometidos pelo fato de que os beneficiários das políticas sociais são, em certa medida, também seus principais financiadores. Visto sob esse prisma, a dicotomia entre “contribuintes e não contribuintes [sic]” perde muito de seu significado, pois todos são contribuintes e mesmo os mais pobres sustentam a arrecadação tributarias devido à tributação indireta. (CASTRO, 2012, p.1027)

Somado a isso, a estratégia de estabilização monetária pós-1994 carrega um novo padrão de financiamento dos gastos sociais federais de 1995 a 2002, gestão psdebista de Fernando Henrique Cardoso. O relativo controle da inflação conduziu o governo brasileiro a um crescente processo de endividamento, quando se reduziram as fontes externas de financiamento e o governo federal foi obrigado a cortar gastos reais e incrementar as receitas próprias para garantir a estabilização monetária, estagnando o ritmo de crescimento do Gasto Social Federal (GSF), que é divido por áreas de atuação, das quais são: Educação, Cultura, Saúde, Alimentação e Nutrição, Saneamento e Meio Ambiente, Previdência Social, Assistência Social, Emprego e Defesa do Trabalhador, Organização Agrária, Habitação e Urbanismo e Benefícios a Servidores Públicos.

Os gastos sociais reduzem a desigualdade social e a política fiscal é um instrumento que se utiliza para amenizar as desigualdades de mercado. A Europa é muito menos desigual que a América Latina não somente pelo mercado de trabalho diferenciado, mas principalmente pelo papel do Estado. Fazendo uma comparação do índice de Gini (que aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos) entre os países latino-americanos e europeus, presente no estudo da CEPAL (2015), percebe-se que quanto maior o gasto público se altera a desigualdade de renda, evidenciando o impacto redistributivo da política fiscal.

A gestão petista do governo federal a partir de 2003, com a presidência de Luis Inácio Lula da Silva tem como característica o aumento dos gastos sociais como mecanismo de combate à desigualdade social, com diversos programas em todas as áreas de atuação do Gasto Social Federal, que segundo Eduardo Fagnani (2011), foi um governo que viveu sob a tensão entre os paradigmas do Estado Mínimo versus Estado de Bem-Estar Social, tendo como primeira etapa (2003-2005) a Mudança ou Continuidade, marcada pela manutenção da ortodoxia econômica que teve consequências nos rumos tensionados das políticas sociais, e a segunda etapa (2006-2010) de Ensaios Desenvolvimentistas, marcada pelo arrefecimentos dessas tensões.

A crise financeira de 2008, que impactou o mundo inteiro e teve origem na crise da bolha imobiliária dos Estados Unidos, que levou a falência de bancos e queda das bolsas mundiais, também foi sentida no Brasil e a gestão de Dilma Roussef (2011-2016) adotou uma política fiscal de enfrentamento da crise subsequente a esse acontecido que gerou uma desaceleração do crescimento em seu primeiro mandato. Após um momento de rápida recuperação da crise, a mudança no arranjo da política econômica foi de reversão da política fiscal expansionista dos anos anteriores diante do cenário de crise da Zona do Euro no início de 2012, combinada com a desaceleração da economia chinesa e lenta recuperação dos EUA. As condições internacionais mudaram drasticamente e tornaram-se cada vez mais adversas, e, assim, a economia brasileira passou da desaceleração para uma recessão no segundo mandato de Dilma, tornando-se cada vez mais difícil a manutenção de uma política econômica que aumentasse ou pelo menos mantivesse os gastos sociais, gerando descontrole nas contas públicas de despesas e receitas.

A situação abriu margem para os interesses de classe dos capitalistas, que ansiosos por adotarem uma agenda de economia política de austeridade, atuaram em torno do golpe em 2016 que depôs a presidenta Dilma Rousseff. Com o argumento de que para arrumar a “bagunça” e a crise política, econômica e social, chamada de “conjunto da obra” pelo qual justificaram a derrubada do governo, seria necessário aplicar uma política econômica rigorosa, de disciplina, sacrifícios, com políticas fiscais restritivas de redução de gastos e aumento de impostos, que por meio desse ajuste fiscal ajudariam a economia e viria a surtir efeito expansionista, corroborando com o crescimento econômico.

A defesa da austeridade fiscal sustenta que, diante de uma desaceleração econômica e de um aumento da dívida pública, o governo deve realizar um ajuste fiscal, preferencialmente com corte de gastos públicos em detrimento de aumento de impostos. Esse ajuste teria efeitos positivos sobre o crescimento econômico ao melhorar a confiança dos agentes na economia. Ou seja, ao mostrar “responsabilidade” em relação às contas públicas, o governo ganha credibilidade junto aos agentes econômicos e, diante da melhora nas expectativas, a economia passa por uma recuperação decorrente do aumento do investimento dos empresários, do consumo das famílias e da atração de capitais externos. A austeridade teria, portanto, a capacidade de reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e retomar o crescimento econômico. (BRASIL, 2018, p.17)

São diversos argumentos utilizados para convencimento da população sobre a necessidade de implementação de uma economia política de austeridade fiscal, que se concentram no mito da fada da confiança, em que os agentes privados resgatariam a confiança e passariam a investir no país diante dessa agenda de “disciplina”, e na metáfora do orçamento doméstico, em que é feita uma falsa simetria do orçamento de uma família com o orçamento do governo, lançando mão do argumento moral de que os anos de excesso devem ser remediados com abstinência e sacrifícios, tendo a austeridade como remédio.

A comparação do orçamento do governo com o orçamento familiar é equivocada, pois o governo tem a capacidade de definir o seu orçamento e fazer escolhas para tal, como tributar pessoas ricas ou importações de bens de luxo para não fechar hospitais, enquanto a família não tem poder de definir o quanto ganha, o orçamento público decorre de uma decisão coletiva sobre quem paga e quem recebe, quanto deve pagar e quanto deve receber. Famílias não emitem títulos de dívida em sua própria moeda e não definem a taxa de juros das dívidas que pagam. Já o governo faz tudo isso.

Os capitalistas se beneficiam das políticas de austeridade à custa de direitos sociais da população, gerando recessão e desemprego, corte de gastos, redução das obrigações sociais, abre espaço para futuros cortes de impostos das empresas e elites econômicas, redução da quantidade e qualidade de serviços públicos, aumentando a demanda de parte da população por serviços privados, que aumenta os espaços de acumulação de lucro privado.

A austeridade é também um dos três pilares centrais do neoliberalismo, juntamente com a liberalização dos mercados, em especial o de trabalho e o financeiro, e as privatizações (Anstead, 2017). A racionalidade dessa política é, portanto, a defesa de interesses específicos e é ainda um veículo para corroer a democracia e fortalecer o poder corporativo no sistema político. Essa perspectiva traz luz para a realidade brasileira, na qual as políticas de austeridade acontecem em um período de extrema instabilidade política e de aumento das tensões de classes. Nesse contexto, a austeridade contrapõe as vítimas dos cortes – principalmente a parcela mais pobre da população – aos perpetradores dessas políticas –as elites econômicas e um governo subserviente. No Brasil, a austeridade impõe o que foi a ambição de décadas de segmentos políticos mais conservadores: revogar o contrato social da Constituição Federal de 1988 e aprofundar as reformas neoliberais. (BRASIL, 2018, p.21)

O governo de Michel Temer trouxe logo em seu primeiro mês em 2016 a proposta de um suposto “Novo Regime Fiscal”, aprovado em dezembro através da Emenda Constitucional 95/2016 (EC 95), instituindo uma regra para as despesas primárias do Governo Federal com duração de 20 anos e possibilidade de revisão – restrita ao índice de correção – apenas após 10 anos. Em resumo, esse novo regime institui uma permanente austeridade e a política fiscal adotada tem papéis múltiplos, em que se destacam as dimensões redistributiva, estabilizadora e de provisão de bens públicos ou semi-públicos.

A eleição de Jair Messias Bolsonaro veio a ser a garantia de manutenção desse regime de austeridade, que atende ao grande capital especulativo que investe e o mantem até hoje na presidência, mesmo diante do seu índice crescente de rejeição e dos diversos pedidos de impeachment engavetados no congresso. Sua permanência no poder atende aos interesses da classe dominante em detrimento da maioria da população, composta pela massa de trabalhadores e trabalhadoras que em boa parte assiste incólume a crise pela qual paga o preço e em outra parte ainda é convencida a apoiá-lo através de uma grande máquina de produção de desinformação e de comunicação através das redes. A próxima eleição se dará em torno daquele que conseguir conciliar esses interesses, pois o grande capital nunca jogou pra perder, quem perde somos nós, o povo que os sustenta.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Brasil Debate; Fundação Friedrich Ebert (2018) Austeridade e Retrocesso: impactos sociais da política fiscal no Brasil. São Paulo. Acesso em: 09/01/2019. Disponível em: https://goo.gl/AqAfR7

Cardoso Júnior, J. C., & Castro, J. A. (2016). Economia política das finanças sociais brasileiras no período 1995-2002. Economia E Sociedade, 15(1), 145-174. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8642924

CASTRO, J. A. (2012). Política social e desenvolvimento no Brasil In: Economia e Sociedade, v. 21, n. 4, dez. 2012 [especial]. Disponível em: https://goo.gl/NySV56

DWECK, Ester., TEIXEIRA, Rodrigo A. A política fiscal do governo Dilma e a crise econômica. Texto para discussão. IE/UNICAMP n.303. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/artigos/3532/TD303.pdf

FAGNANI, Eduardo. (2011). A política social do Governo Lula (2003-2010): perspectiva histórica. Texto para discussão. IE/UNICAMP n.192. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/artigos/3105/TD192.pdf


segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Sim, sou mal-amada!

Existe um conhecido jargão que lança às mulheres quando estão irritadas ou mal-humoradas a alcunha de mulher mal-amada, relacionando a falta de sexo ao estado de stress que a mesma se encontra, e deixa implícita a mensagem de que a mulher para ficar bem e calma necessita de um falo que lhe dê prazer, e somente o homem seria capaz de cumprir esse papel. O famoso “isso é falta de homem” complementa a ofensa.

Pois bem, o fato é que grande parcela das mulheres são mal-amadas na real. Não somente pela falta de sexo, que faz parte da rotina de diversas relações, ou sexo de péssima qualidade, mas pelo tratamento que recebemos todos os dias de nossos companheiros homens. Faço parte do exército de mulheres mal-amadas, pois hoje sendo solteira e sem intenção alguma de assumir relacionamento, sou imediatamente direcionada ao papel de puta, objeto de uso e desuso, e deste modo sou assim tratada, sem respeito ou cuidado, já que não sou digna, e assim também opera o patriarcado sobre mim. É difícil encontrar sexo de qualidade quando o tesão desperta não somente pelo físico, pela química, mas também pelo caráter e inteligência.

E por falar em relacionamento, qual a mulher que convive com um homem que não teve que se irritar ou aturar a louça suja na pia, a cueca enrolada no chão, a privada suja, a “inaptidão” e “lentidão” para executar certas tarefas domésticas, fazendo com que a mulher assuma logo a tarefa de vez pra não se irritar ainda mais, que tem que lembrar o companheiro de todas as obrigações que são dele, do cuidado com as crias, do que elas necessitam, a ponto até de marcar a consulta do homem adulto junto ao médico, causando uma sobrecarga mental que é invisibilizada. Certamente que são pouquíssimas as que não passaram ou ainda passam por essas e outras situações! Pare e ouça com atenção as queixas de uma mulher casada e verá que a lista de situações irritantes e exaustivas é muito maior!

Somos subjugadas, controladas, humilhadas, violentadas, estupradas e até assassinadas por nossos companheiros, as estatísticas não me deixam mentir! As mulheres não são somente mal-amadas, são odiadas mesmo! A mulher negra ainda ganha mais uma camada de ódio, desprezo e humilhação, dado o peso do racismo sobre nossa existência. Foram muitos anos que nossos corpos foram animalizados, herança da escravidão, que manteve a comercialização de nossos corpos e com papeis determinados para exploração, seja sexual ou do trabalho doméstico.

Da próxima vez que disser (eu espero que não diga) ou ouvir que uma mulher é mal-amada, pense nisso que acabou de ler. Se tu amas mulheres, segue dando amor e muito mais amor, lutando para que sejamos bem-amadas, melhorando a cada dia, se observando e tomando atitudes que demonstrem amor. Não queremos somente palavras lindas, promessas, presentes ou juras de amor, queremos atitude! ATITUDE! Queremos ver a prática do dia a dia provando que existe amor e cuidado, diálogo e autocrítica, companheirismo e respeito.

Se tu, mulher, é bem-amada, que maravilha! É justamente isso que queremos pra todas nós! Seguiremos na luta por nossa felicidade, por nossas vidas, por nossas (re)existências! Que as mulheres sejam felizes e bem-amadas não só por seus parceiros, mas por todas as relações, que sejamos respeitadas e valorizadas, felizes sozinhas ou acompanhadas. Felizes!

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Maternidade: amor, solidão, imposição

Quando a mulher se entende com um útero, possuidora de um órgão que pode gerar outro ser dentro de si, sente em algum momento o dilema de querer ou não experimentar a sensação de gerar um filho. Daí é viver a dicotomia do cuidado e medo de engravidar cedo demais e mais tarde a angustiante contagem regressiva de um “relógio biológico”, como se tivéssemos um prazo de validade prestes à expirar. Esse dilema vem acompanhado de muitas questões e influências, principalmente ligadas à nossa socialização e modelo de sociedade que estamos inseridas. 

Para a maioria de nós, a maternidade é romantizada, é pintada de rosa todos os dias desde nossas brincadeiras de cuidar de bonecas até os filmes, animações, novelas e séries que transmitem a imagem do final feliz da mulher sendo mãe e formando uma família com seu príncipe encantado. A mulher que ousa apontar as desvantagens e crises reais do ser mãe e desse ideal perfeito de família tradicional é castigada por subverter essa ordem, recebe julgamentos depreciativos como amargurada, ressentida, mal-amada, frustrada, louca, doente. É preciso muita coragem pra contrapor a ordem vigente!

“Ser mãe é padecer no paraíso” escutamos desde cedo. O paraíso, eu como mãe posso afirmar, é o amor de uma criança, sentir o amor de uma criança é algo sem igual, sentir no olhar, no sorriso, nos gestos mais verdadeiros e sinceros que aquele serzinho tão pequeno e tão incrível, te ama de forma honesta e pura. Mas ouso dizer que esse amor, o de mãe, da maternidade, não é o maior, nem o mais intenso e único, é o amor da criança que te causa essa sensação. 

O amor de quem cuida e convive com uma criança intensamente, de quem é responsável por sua vida, uma tia, um tio, uma avó, um avô, padrasto, madrasta, ou até de alguém sem parentesco algum, pode ser tão intenso e protetor quanto de uma mãe. O amor nasce da convivência. Tu experimentas esse amor, por exemplo, quando tá na rua, passa por brinquedinhos de um camelô e já lembra da criança, quando sente saudade, quando se preocupa na doença, não quer vê-la sofrer e morre de medo de perder essa criaturinha. Enfim, acredito que esse amor pode ser experimentado na mesma dimensão, independente de ser mãe.

Outra situação são das mães que não sentem esse amor, seja por sofrerem com a depressão pós parto ou surpreendidas pela alta carga de demandas e responsabilidades que um bebê exige. A mulher se vê em crise, pelos julgamentos ou por sentir-se horrenda e monstruosa ao não corresponder essa lógica do "amor maior do mundo", por vezes não se percebem adoecidas e só intensificam seu estado de dor ao não buscar ajuda profissional. O mesmo julgamento cruel se dá com mães que abandonam os filhos, ao não considerar os fatores psicológicos, hormonais, sociais e estruturais que podem ter levado a essa atitude. Cada ser é único e experimenta as sensações de forma diferenciada, por isso a importância de parecer de especialistas ao invés de achismos ou execrações.

O amor, para além do sentimento, também é uma construção social, deste modo, o amor e o instinto materno nem sempre existiram nesses moldes na história da humanidade. A maternidade compulsória foi incorporada à nossa cultura com objetivos definidos e a coerção social, conceito de Durkheim, é um mecanismo utilizado na manutenção da cultura da maternidade compulsória, pois no modelo capitalista quanto maior for o excedente de mão de obra, maior também é a possibilidade de exploração dos seres humanos, que irão se submeter a qualquer oferta de trabalho por sua subsistência. 

Mulheres são as máquinas reprodutoras de mão de obra. A sociedade pressiona de diversas maneiras as mulheres para que sejam mães e formem família, tendo a romantização como arma das mais poderosas, que passa a ser utilizada de forma mais contundente a partir da queda da cultura dos casamentos arranjados nas sociedades ocidentais, em que entra em cena a união por amor, e o avanço da ciência com os métodos contraceptivos, que vieram a permitir à mulher escolher. Para manutenção da ordem, se faz necessário influenciar nessa escolha.

O romantismo nasce entre os séculos XVIII e XIX na Europa, junto com a transição para o sistema capitalista e pelas mãos da burguesia. E o dia das mães se oficializou no Brasil em meio ao seu processo tardio de formação do Estado capitalista industrial, início do século XX, e em sua comercialização, além do aquecimento da economia e do comércio, é vendido às mulheres que não existe amor igual ao de mãe, e a mulher que não vir a experimentar esse amor será incompleta, infeliz, sem amor, seca, e as que se negarem ser mães serão acusadas de egoístas. 

É com essa pressão que as mulheres que optam por não ter filhos têm que conviver e algumas acabam por ceder, arrependendo-se mais tarde. E as mulheres que não podem gerar filhos sofrem também com essa pressão, se culpam e se martirizam pelo castigo de nunca poderem sentir esse amor. Poderiam adotar uma criança, mas vem os argumentos de que não é a mesma coisa, tem que ter meu sangue, meu DNA, o do pai também, e um monte de imposição que só levam a um caminho: a mulher como ser reprodutor. 

Controlando nossos úteros e nossas decisões, somos conduzidas à reproduzir a qualquer custo. Outra ferramenta que reforça é a religião, na maioria cristãs, que encorajam o não uso de métodos contraceptivos, pois interromper a reprodução humana configura "pecado", no máximo uso da tabelinha e abstinência sexual, que além de pouco eficazes, não previnem de DSTs.

A realidade é que a mesma sociedade que nos empurra para a maternidade é a mesma que depois não vai nos dar uma lata de leite e nem cuidarão da criança para que a mãe possa trabalhar, estudar, viver. Aliás, viver é algo que não pertence às mães, pois a vida delas agora pertence aos filhos. “Meus filhos são a minha vida!” já ouviu isso? A anulação feminina com a maternidade é tão natural que torna-se imperceptível.

A maternidade é muitas vezes solitária. Uma criança exige atenção o tempo inteiro e essa atenção compulsoriamente é responsabilidade da mãe, pois “quem pariu Mateus que o embale”. Quer sair pra tomar um chopp com as amigas, mas tem um bebê? Vai passar por julgamento com certeza, mãe não tem direito ao lazer, maternidade é padecer, lembra? E isso se conseguir alguém pra “embalar o Mateus”.

“Mas se a criação for compartilhada com o pai e se tiver rede de apoio é mais leve!” Não é bem assim. Primeiro que mesmo com rede de apoio, ainda vai recair na mulher o maior peso da responsabilidade por tudo, e dinheiro não será impeditivo de sofrer com o machismo, os julgamentos e pitacos serão uma constante. E na real, na maioria, mulheres e famílias não têm condições de pagar por uma rede de apoio, restando muitas vezes para a mulher abrir mão do emprego ou entregar para a avó cumprir esse papel “por amor”. O cuidado feminino é pago com “amor”.

Por amor, mulheres cuidam da casa, da família, do marido, reproduzem mão de obra e criam pra entregar ao mercado, tudo isso sem remuneração, pois as tarefas domésticas não são vistas da mesma maneira que um trabalho formal, são vistas como cuidado, como amor, e o cuidado pertence às mulheres. O capitalismo e o patriarcado dependem desse trabalho. 

Ao interseccionar com raça e classe, observamos que as mulheres negras e pobres são as que mais assumem esse papel e de forma dupla, pois cuidam das suas crias e das de quem são pagas para cuidar, como babás e empregadas, com remunerações baixas e poucos direitos, lembrando que outrora, no período escravagista, nem remuneração havia. Não à toa a sociedade brasileira, racista e saudosa da escravidão, reagiu com muitas críticas em 2015 à legislação do trabalho doméstico.

Neste sentido, por vivermos numa sociedade estruturalmente machista e racista, não se consegue compartilhar de igual pra igual a responsabilidade de mãe e pai com sua cria, nosso papel consolidado de cuidadora nos faz naturalmente assumir maiores cargas de atenção do que o pai, e muitas vezes sem nem percebermos, nos culpamos se nos ausentamos e falhamos nesse papel. O peso da responsabilidade não é o mesmo, seja por preguiça e relaxo desse homem, seja pela conveniência que eles têm de não terem sido socializados da mesma forma que nós, e por mais maravilhoso e participativo que seja esse pai, muitas vezes nos vemos cara a cara com a solidão.

A solidão de quando ele sai pra trabalhar e estamos integralmente com uma criança em casa. A solidão de dar conta de tarefas que eles se negam a assumir, seja com a desculpa de não possuir habilidade, de que a mulher faz melhor, que está cansado do trabalho, mesmo que a mulher também tenha um emprego, ela não tem direito ao descanso. A solidão de não sermos lembradas pelas amigas e amigos quando estamos com uma criança. Ninguém quer fazer programa com quem tem criança, a não ser as amigas mães que estão na mesma, daí dá-se as mãos e se ajudam, e se a mãe for casada ainda é esquecida pelas amigas mães solos muitas vezes, por ter guardada a impressão de que a casada não está sozinha, ela tem uma família, tem um marido, tem companhia. 

Agora amigo pai pra fazer o mesmo, ainda não vi. Até porque raras vezes a gente vai ver um pai completamente sozinho com crias, eles sempre estão acompanhados e nem precisam nos procurar pra esse apoio. Observe por exemplo num parquinho quantas crianças estão acompanhadas de um homem sozinho e quantas estão com uma mulher sozinha. Eles quando estão no parquinho sempre têm companhia, mas muitas mulheres não.

Um homem pai sozinho é rapidamente assessorado, é visto como herói, de tão raros que são. A esposa, a mãe, a sogra, a namorada, a amante, uma amiga, sempre alguém se compadece de um homem sozinho com uma criança, inclusive ajudam por preocupação com a criança também, já que o papel de cuidado não pertence aos homens e a criança pode estar assim malcuidada. A não ser que ele negue essa ajuda feminina e resolva assumir tudo sozinho, o que é bem raro também, chega a ser exceção, pois sentem o peso da solidão, da responsabilidade e rapidamente podem vir aceitar as ofertas femininas de cuidado. 

É uma vantagem que não se enxerga, porque é naturalizada. Para a mãe, resta a força pra dar conta de tudo, o estigma das mulheres guerreiras. E quando entram em colapso pela sobrecarga, adoecem depressivas, são mais uma vez julgadas como fracas ou cruéis, egoístas por negarem-se a dar conta dessa missão divinal, uma fracassada.

Se chegaste até aqui, mana, deixo minhas sugestões: Se tu queres ser mãe, pesa tudo, pense no orçamento, nas atividades que deixará de exercer temporariamente por causa da criança, das anulações, leva alguns anos da vida. Se deseja dividir a criação com o pai na mesma casa, precisa pesar também a convivência com um homem, porque no final de tudo a carga maior vai ser tua, por mais alecrim dourado que ele seja, não tem como escapar disso porque a sociedade toda é estruturada pra ser assim, com o peso pesado para as mães, e a não ser que ele seja um ET, ele foi criado e socializado nesse mundo, com papeis definidos para homens e mulheres. E no momento que apertar peça ajuda, pois tu podes adoecer em qualquer momento, ou não. 

Se o casamento pesar mais que a maternidade, te causar mais problemas e infelicidade, caia fora! Por mais difícil que seja ou o tempo que leve, te organiza e vai embora, em algumas situações é caso de vida ou morte, infelizmente, mas pode ter certeza que vais dar conta muito melhor da tua vida e da maternidade sem esse peso!

Se tu NÃO queres ser mãe, mantenha firme tua decisão. Não mude de ideia pra agradar quem quer que seja, principalmente homem, só se for tua vontade mesmo, não imposição. Não ceda, porque depois na solidão vai bater o arrependimento, não do amor da criança, mas das anulações e privações que tu decididamente já estavas disposta a não querer passar e vais te amargurar por isso, sem volta. Se vier a engravidar mesmo assim, pese bem a decisão, pois é teu corpo e tua vida que vai mudar.

Importante entender que filhos não são poupanças para o futuro, nem posses, objetos ou em quem depositamos nossos desejos não realizados, é incerto apostar no “quem vai cuidar de mim na velhice”, seja pelo medo de ficar só, ou o filho vai se dar bem e te bancar, enfim, um mundo de expectativas e responsabilidades num ser que sequer pediu pra nascer. Filhos seguem a vida e não temos como controlar seus destinos. Medo de ficar só nos mete em ciladas, cuidado! Não há nada de aterrorizante em morar sozinha, nem de fracasso ou amargura, cultive sua autonomia, amor próprio e seja feliz!

Se tu queres ser mãe, já ciente de tudo que foi dito aqui, mas não consegue engravidar, adote uma criança, não exite! O amor é idêntico, é o amor de uma criança cuidada por ti, que vai te chamar de mãe do mesmo jeito. Sempre digo à minha filha que tudo que a gente cuida bem e dá amor fica bem, e sempre nos responde de alguma forma. Nossas plantas ficam bonitas, dão flores se bem cuidadas, e uma criança dá o amor mais puro, independente se saiu ou não da tua barriga. 

Nem cair em conversa de que a criança adotada pode vir com personalidade do pai ou mãe que tu sequer conheces. Caráter não vem em DNA, o ser humano é moldado em sociedade, de acordo com o núcleo social que vive, ele vê e repete, e assim como é moldado em casa, pela família, a sociedade também molda e apresenta diversas perspectivas, e mais uma vez não temos controle. Filhos podem ser bons ou ruins adotivos ou não.

E se não pode gerar e também não quer, não se martirize, nem se deixe abater. É difícil, mas infelizmente é essa a vida, precisamos nos defender e tentar viver da melhor forma. A maternidade compulsória, bem como a imposição do conceito de família tradicional, podem levar à realidade de violência, irritabilidade e frustrações. Uma criança precisa ser muito desejada e planejada, pois exige altas cargas de paciência, amor e estrutura para sua educação.

Que possamos refletir mais sobre essa escolha e que não nos permitamos adoecer por coerções sociais. Vamos sentir culpa, sendo mães ou não, por isso é importante ter noção da estrutura que nos dita as regras para não cair no jogo, assumindo culpas que não nos pertence, são impostas. Que nossos corpos e nossas decisões sejam livres! Força sempre às mulheres, é urgente descolonizar nossos afetos!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Resumo: A documentação como método de estudo pessoal e diretrizes para leitura, análise e interpretação de textos - Severino

Seguindo com as postagens de minhas produções no curso de mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas da FLACSO - Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais, que iniciei em fevereiro de 2020 com a disciplina "Técnicas de Redação e Pesquisa Científica". Esse material é a primeira tarefa da disciplina e achei ótimo pois nos orienta a ter melhor rendimento nos estudos e leituras através da técnica de documentar suas leituras, um exercício que já vinha fazendo desde a graduação ao dar ouvidos às dicas do Glaydson, pai da minha filhota, enquanto era mestrando e que também fez a leitura sobre metodologia. Agora tenho diversos textos resumidos, resenhados ou fichados que compartilho e mantenho organizado nesse blog. Certeza que é mais trabalhoso documentar que somente fazer a leitura, mas é um trabalho que vale muito a pena!



Resumo de: SEVERINO, A. J. Metodologia do Trabalho Científico.
21 ed. São Paulo: Cortez, 2000.


2º Capítulo: A documentação como método de estudo pessoal

         A eficácia do estudo e da aprendizagem se faz quando são criadas as condições para uma progressiva e contínua assimilação pessoal dos conteúdos, seja qual for a área do conhecimento, sendo necessária uma assimilação qualitativa e seletiva, bem como o entendimento de que se trata de uma tarefa eminentemente pessoal.

A prática da documentação é uma ferramenta importante, pois o saber constitui-se pela reflexão, que exige domínio de uma série de informações, que são adquiridas através da documentação realizada criteriosamente, não sendo suficiente somente ouvir aulas e ler livros clássicos. Este conhecimento ganha valor quando fica à disposição do estudante em qualquer momento da sua vida intelectual, ou seja, traduzido em documentação pessoal, preferencialmente em fichas, especificado em três formas: a documentação temática, a documentação bibliográfica e a documentação geral.

A documentação temática tem por objetivo coletar o que há de relevante para o estudo ou para realizar um trabalho específico, seguindo um plano sistemático com temas e subtemas da área do trabalho em tela, que podem ser tirados também das aulas, conferências ou seminários, bem como as ideias pessoais importantes, para que não se percam com o passar do tempo. As fichas de documentação temática formam um fichário com conhecimentos importantes de um curso, por exemplo, em que cada disciplina e suas partes essenciais determinam os títulos das fichas. Das aulas, os estudantes podem passar os apontamentos mais importantes para as fichas, sistematizando-as, fazendo-se o mesmo com os livros e leituras complementares do curso.

A documentação bibliográfica vem completar a documentação temática, pois estas se organizam com o critério de natureza temática. O fichário de documentação bibliográfica é formado por um conjunto de informações sobre livros, artigos, produções sobre determinados assuntos, proporcionando um rico acervo para os estudos. Deve ser realizada paulatinamente, de acordo com o contato com as leituras ou informes e suas informações transcritas em níveis mais aprofundados. Não há um tamanho padrão para estas fichas, ficando a critério do estudante.

A documentação geral organiza e guarda documentos úteis retirados de fontes perecíveis, como recortes de jornais, revistas, apostilas, etc., sendo arquivados sob títulos classificatórios de seu conteúdo, podendo servir de base para a documentação temática e bibliográfica.

A documentação em folhas de diversos tamanhos, embora dificulte a manipulação, tem a vantagem de permitir a substituição do fichário tipo caixa por pastas-arquivos, classificadores, que facilitam o transporte. Pode fazer o mesmo esquema de organização e classificação, por disciplinas, temas, etc.

O vocabulário técnico linguístico é um conjunto personalizado de termos para necessária compreensão da leitura como para redação, sendo os termos sistematicamente transcritos e explicitados. Por fim, o capítulo encerra com exemplos de ficha de documentação temática.


                 3º Capítulo: Diretrizes para leitura, análise e interpretação de textos


          O capítulo apresenta diretrizes para leitura, análise e interpretação de textos diante das dificuldades enfrentadas pelos estudantes na exata compreensão de textos teóricos, em especial na ciência e filosofia, que acabam por reforçar desânimo e desencanto pelo pensamento teórico. Porém essas dificuldades não são insuperáveis e para tanto é necessário criar condições de abordagem e de inteligibilidade do texto que vão colaborar nesse sentido.

        O autor antes de apresentar essas diretrizes aborda a função dos textos sob a ótica de uma teoria geral da comunicação, partindo da premissa que é através da transmissão de uma mensagem entre um emissor e um receptor que se dá a comunicação, sendo este o esquema geral que a teoria apresenta. O emissor é considerado como uma consciência que transmite uma mensagem para o receptor, outra consciência, deve então ser pensada e depois transmitida, tornando assim o texto-linguagem o intermédio pelo qual duas consciências se comunicam.

        Durante este processo, o homem sofre uma série de interferências pessoais e culturais que podem prejudicar a objetividade da comunicação, sendo necessária certas precauções para garantia dessa objetividade na interpretação da comunicação.

        Em primeiro lugar, delimitar uma unidade de leitura, sendo a unidade um setor do texto que forma uma totalidade de sentido, como um capítulo ou uma seção. Para fins de estudos, a leitura deve ser feita por etapas e de maneira contínua, só passando para a unidade seguinte após terminada a análise da unidade em questão, sendo possível ao final refazer um raciocínio geral do livro, sintetizando-o.

        O passo seguinte é análise textual, que é a primeira abordagem para preparação da leitura, fazendo uma leitura seguida e completa da unidade em estudo, atenta, mas ainda corrida, para assim tomar contato com toda a unidade garantindo uma visão panorâmica de raciocínio do autor, aproveitando para levantar todos os elementos básicos para compreensão do texto, assinalando os pontos passíveis de dúvidas.

        O primeiro esclarecimento é buscar dados a respeito do autor do texto, em seguida o vocabulário, levantando conceitos e termos que são desconhecidos pelo leitor, assim como podem abordar fatos históricos, outros autores e outras doutrinas também desconhecidas, e nesta primeira abordagem todos os elementos precisam ser transcritos numa folha à parte, para pesquisa em dicionários, textos de história, manuais didáticos, bem como outros estudiosos e especialistas da área, configurando assim uma tríplice vantagem: diversifica as atividades no estudo, propicia informações e conhecimentos que passariam despercebidos, por fim possibilita uma leitura mais agradável.

        Isto feito, a análise textual pode se encerrar com uma esquematização do texto, obtendo uma visão de conjunto da unidade, sendo confundido muitas vezes com o resumo do texto, mas este processo não realiza ainda todas as exigências para um resumo lógico do pensamento contido no texto. O esquema permite somente uma visão global do texto.

      A segunda etapa, que é a análise temática, vem dar conta da compreensão da mensagem global, procurando ouvir o autor, apreender sem intervir, fazendo perguntas que trarão em suas respostas essa compreensão. Em primeiro lugar, busca-se revelar o tema ou assunto da unidade, que nem sempre está em seu título, além de captar a perspectiva de abordagem do autor. Em seguida, capta-se a problematização do tema, sendo condição básica para compreensão do texto apreender o que “provocou” o autor. Devidamente captada, busca-se o que o autor fala sobre o tema, como responde a essa problemática, qual sua posição, qual ideia defende, o que deseja demonstrar, sendo revelada assim a ideia central, proposição fundamental ou tese. Na explicitação desta tese deve ser usada sempre uma proposição, uma oração, um juízo completo, não somente uma expressão, como ocorre com o tema. A análise temática é que servirá de base para o resumo ou síntese de um texto.

        A terceira abordagem do texto visando sua interpretação é a análise interpretativa. Na primeira etapa procura-se situar o pensamento geral do autor com o pensamento desenvolvido na unidade, esse pensamento em seguida permite situar o autor no contexto mais amplo da cultura filosófica em geral. Nessas duas etapas ao mesmo tempo busca-se o relacionamento lógico-estático das ideias do autor no conjunto da cultura daquela área, bem como o relacionamento lógico-dinâmico de suas ideias.

        Em seguida, de um ponto de vista estrutural, explicitam-se os pressupostos que o texto implica, que são ideias que nem sempre aparecem evidentes no texto, são princípios que justificam a posição assumida pelo autor muitas vezes. A crítica é o passo seguinte da interpretação, buscando-se a formulação de um juízo crítico, fazendo um julgamento do texto pela sua coerência interna ou sua originalidade, alcance, validade e sua contribuição ao tema.

        A quarta abordagem é a problematização, que visa o levantamento dos problemas para discussão, que podem ser desde problemas textuais até os mais difíceis problemas de interpretação. Importante observar a distinção entre a tarefa de determinação do problema  e a problematização geral do texto, pois esta agora é tomada em sentindo amplo para discussão e reflexão.

        Por fim, a síntese pessoal, resultante da discussão da problemática levantada e a reflexão a que ele conduz, que está ligada a construção lógica de uma redação, sendo um valioso exercício de raciocínio, garantindo o amadurecimento intelectual.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Resenha: Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária - Marilena Chauí

Mais uma tirada do baú do 1º semestre do curso de Ciências Sociais em 2014. Resenha do 2º e do 5º capítulos da obra de Marilena Chauí "Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária", em que são abordadas questões como populismo, a necessidade que temos de "mitos" e como essa cultura foi construída na sociedade brasileira. Depois dessa leitura à época, só me reforçou a ideia de não endeusar qualquer figura política que seja, pois a gente só perpetua essa cultura e jamais consegue quebrá-la. 

Resenha de: "A nação como semióforo" e "Mito Fundador". In: CHAUI, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. 1ª Ed.São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

 A nação como semióforo

Marilena Chaui, em Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária discorre no segundo capítulo “A nação como semióforo” sobre os símbolos e os fatos que formaram a concepção de nação em nosso país, bem como suas causas, mostrando a designação do termo semióforo para dar clareza à nação construída sob esse prisma, dando como significação:

Um semióforo é, pois, um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa ou uma instituição retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e imediata na vida cotidiana porque são coisas providas de significação ou de valor simbólico, capazes de relacionar o visível e o invisível, seja no espaço, seja no tempo, pois o invisível pode ser o sagrado (um espaço além de todo o espaço) ou o passado ou futuro distantes (um tempo sem tempo ou eternidade), e expostos à visibilidade, pois é essa exposição que realizam sua significação e sua existência. (CHAUI, 2000: p.12)

São descritos pela autora o poder que os semióforos exercem sobre a humanidade e por fim a necessidade do poder político construir um semíoforo fundamental, que será o lugar e o guardião dos semíoforos públicos, que é a nação.

No decorrer do texto, trabalha sobre a recente invenção histórica da nação, entendida como Estado-nação, com sua definição pela independência ou soberania política e pela unidade territorial e legal, buscando na história a partir de 1830 essa significação baseada no vocabulário político proposta por Eric Hobsbawm, além das derivações linguísticas.

O ponto de partida dessas elaborações foi, sem dúvida, o surgimento do Estado moderno da “era das revoluções”, definido por um território preferencialmente contínuo, com limites e fronteiras claramente demarcados, agindo política e administrativamente sem sistemas intermediários de dominação, e que precisava do consentimento prático de seus cidadãos válidos para políticas fiscais e ações militares. (CHAUI, 2000: p.16)

A partir deste ponto, a autora discorre sobre a necessidade de um meio de dominação do liberalismo econômico, que não significa ser sinônimo de democracia, e que o Estado-nação vem a ser esse mecanismo, que vem a enfrentar os desafios de incluir todos os habitantes do território na esfera da administração estatal ao tempo que necessita obter a lealdade dos mesmos ao sistema dirigente, em que a luta de classes e a religiosidade disputavam essa lealdade, e desta forma foi surgindo como solução a ideia de nação, em que os economistas nacionais viriam a trabalhar com o conceito de “economia nacional” e “riqueza das nações”.

Porém o estado necessitava de algo além do que a passividade de seus cidadãos, precisava influenciá-los a seu favor, uma religião cívica, chamada patriotismo. No período de 1880-1918 a “religião cívica” transforma o patriotismo em nacionalismo, tornando-se estatal, reforçados com sentimentos e símbolos de uma comunidade imaginária. O século XX com a Revolução Russa, Primeira Guerra Mundial e depressão econômica dos anos 20-30, com o aguçamento da luta de classes deu luz a arrancada mais forte do nacionalismo, o nazi-facismo.

Marilena Chaui aborda de forma enfática que “a nação como semióforo”, a “ideia nacional” é um instrumento unificador que o sistema capitalista utiliza para facilitar a dominação dos povos, sistema este que se viu ameaçado com as lutas populares socialistas, resistência de grupos tradicionais e o surgimento da pequena burguesia, que temia a proletarização e aspirava o aburguesamento.

Porque a luta de classes teve uma capacidade mobilizadora menor que o nacionalismo? Por que até mesmo as revoluções socialistas acabaram assumindo a forma de nacionalismo? Por que a 'questão nacional' parecia ter sentido? […] A possível explicação encontra-se na natureza do Estado moderno como espaço dos sentimentos políticos e das práticas políticas em que a consciência política do cidadão se forma referida à nação e ao civismo, de tal maneira que a distinção entre classe social e nação não é clara e frequentemente está esfumada ou diluída. (CHAUI, 2000: p.20)

Esta situação é, de acordo com a autora, em nosso país vista da melhor forma no processo de nacionalismo das esquerdas no Brasil nos anos 1950-60 e deste ponto passa a discorrer sobre o “caráter nacional brasileiro”, que pode vir de elaborações ideológicas de cunho positivo ou negativo, e a “identidade nacional” que precisa ser concebida como harmonia e/ou tensão entre o plano individual e o social. A primeira tem a nação como formada pela mistura de três raças – índios, negros e brancos – como sociedade mestiça que desconhece o preconceito racial, sendo o negro visto pelo olhar do paternalismo branco, enquanto na segunda o negro é visto como classe social, a dos escravos.

Toda essa construção, de acordo com Marilena Chaui, hoje parece ter perdido sentido, pois enquanto a nação e nacionalismo foram objeto de discursos partidários, programas estatais, lutas civis e guerras mundiais no período de 1830 a 1970, na atualidade deu lugar ao multiculturalismo, do direito à diferença, e a prática econômica neoliberal não apenas tirou da cena política e ideológica as nacionalidades, mas também as colocam como referenciais importantes apenas em países que não tem muito peso em termos de poder econômico ou nacionalidade travejada pela religião.

E desta forma a autora encerra fazendo a crítica a celebração do “Brasil 500”, colocando-o como pertencente ao campo mítico, um semióforo historicamente produzido, tendo como função a reatualização de nosso mito fundador. 

O mito fundador

O 5º capítulo vem tratar das invenções históricas e construções culturais que circundam a história das Américas, mais especificamente do Brasil, primeiramente à época de sua “descoberta” ou “achamento”, período este que configuram os principais elementos para construção de um mito fundador, com o efeito de poder teológico-político, colocado pelo filosofo judeu-holandês Baruch Espinosa.

As grandes navegações, as conquistas e colonização foram parte constituinte do capitalismo mercantil, porém existe o ponto de vista simbólico, que vê as grandes viagens como alargamento das fronteiras do visível e um deslocamento das fronteiras do invisível. Estas viagens não trazem somente novas mercadorias, mas também novos semióforos.

Os escritos medievais consagraram um mito poderoso, as chamadas Ilhas Afortunadas ou Ilhas Bem-aventuradas, lugar abençoado, onde reinam primavera eterna e juventude eterna, onde homem e animais convivem em paz. (CHAUI, 2000: p.59)

Este trecho, aliado a ideia de paraíso colocada pelo livro bíblico de Gênesis, vem fundamentar o texto da autora no sentido da sagração da natureza das Américas, em especial nosso país, que fica evidente nos textos dos navegantes, como a carta de Pero Vaz de Caminha, cartas e diários que impressionam pela descrição de um mundo novo e diverso da Europa.

Chaui faz então o paralelo para os símbolos de nosso país, como nossa bandeira, que é quadricolor, não narra a história do Brasil, um símbolo da natureza, diferente por exemplo da Europa que desde a Revolução Francesa tem bandeiras revolucionárias que tendem a ser tricolores e são insignias das lutas políticas por liberdade, igualdade e fraternidade.

Neste sentido, vem tratar dos efeitos que produz o Brasil-Natureza, fazendo menção à teoria do direito natural subjetivo e objetivo, uma hierarquia de perfeições e poderes desejada por Deus, indicando que a Natureza é constituída por seres que naturalmente se subordinam uns aos outros. Baseado na descrição de Caminha dos habitantes da terra achada como inocentes e sem crença,  os colocando abaixo dos cristãos, foi justificada a escravidão necessárias neste período de colonização, como exigência econômica.

Além dessas teorias, com a escravização de índios e negros se ensina que Deus e o Diabo disputam a Terra do Sol, pois a serpente habitava o paraíso. Surge assim outro efeito da imagem do Brasil-Natureza que é a disputa cósmica entre Deus e o Diabo, sem se referir à divisões sociais, e sim como da própria natureza.

Este efeito perdura no início do século XX com a descrição de “Os sertões” de Euclides da Cunha, substituindo Deus e Diabo pela ciência, através do estudo do clima, geologia e da geografia, presentes em sua obra, dando origem a uma tese de longa persistência, a dos “dois Brasis”, reafirmada pelos integralistas nos anos 20 e 30, colocando em um lado o Brasil litorâneo, caricatura burguesa e letrada da Europa liberal e o Brasil sertanejo, real, pobre analfabeto e inculto.

A autora coloca a história como segundo elemento na produção do mito fundador, a história teológica ou providencialista, da história como realização do plano de Deus ou da vontade divina, esclarecendo o caráter dramático do tempo judaico baseado na vontade de Deus e a relação do homem com Deus, que vem dar forma e sentido à ideia cristã de história, como operação de Deus no tempo.

Esta relação é feita pelo sentido divino dado ao Brasil, como “terra abençoada por Deus”, o paraíso reencontrado, e desta forma seríamos o berço do mundo, o mundo originário e original. “'Brasil, país do futuro' é porque Deus nos ofereceu os signos para conhecermos nosso destino: o Cruzeiro do Sul, que nos protege e orienta, e a Natureza-Paraíso, mãe gentil.” (CHAUI, 2000: p.75)

Um só rebanho, um só pastor. Uma só cabeça, um único cetro e um único diadema. A imagem teológica do poder político se afirma porque encontra no tempo profano sua manifestação: a monarquia absoluta por direito divino dos reis. (CHAUI, 2000: p.79)

Nesta altura do texto, a autora aprofunda sobre a função da monarquia absoluta como sagração do governante na produção do mito fundador, discorrendo sobre o direito divino dos reis como forma de assegurar o pleno controle para manutenção de uma rede intricada de privilégios e poderes estamentais, uma teia de clientelas e favores, corrupção e venalidade.

Um outro efeito pode ser observado se reuinirmos a sagração da história e a sagração do governante. Ao articulá-las, notaremos que o mito fundador opera de modo socialmente diferenciado: do lado dos dominantes, ele opera na produção da visão de seu direito natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito natural por meio das redes de favor e clientela, do ufanismo nacionalista, da ideologia desenvolvimentista e da ideologia da modernização, que são expressões laicizadas da teologia da história providencialista e do governo pela graça de Deus; do lado dos dominados, ele se realiza pela via milenarista com a visão do governante como salvador, e a sacralização-satanização da política. (CHAUI, 2000: p.86)

Descrevendo a forma de poder monárquico em que o rei representa Deus e não os governados e os que recebem o favor régio representam o rei e não os súditos, Marilena Chaui evidencia como a sagração do governante nestes moldes vem construir a prática da representação política em nosso país, que até os tempos atuais os representantes políticos, embora eleitos, não são percebidos como representantes, e sim como representantes do Estado em face do povo, o qual se dirige aos representantes para solicitar favores ou obter privilégios. Esta relação se manifesta com grande força no populismo da política brasileira.

Em resumo, a autora descreve o populismo como um poder que ativamente se realiza sem recorrer às mediações políticas institucionais, pensado e realizado sob a forma de tutela e do favor, em que o governante é detentor exclusivo do poder e do saber,  como estando fora e acima da sociedade, um poder de tipo autocrático, que na atualidade relacionada da autora tem esse aspecto favorecido pela ideologia neoliberal, com o personalismo, narcisismo e intimismo trabalhado através do “marketing político” e da “indústria política”.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Os indígenas na obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre

 Esses dias estava organizando um e-mail que há tempos não mexia e encontrei diversos trabalhos que fiz no 1º semestre do curso de Ciências Sociais da UFPA, publico esta resenha agora porque tem tudo a ver com o que tenho refletido esses dias sobre a conjuntura no meu trabalho. Certeza que poderia ser um trabalho melhor hoje, mas demos o devido desconto por ser um trabalho de caloura ;)


Resenha de: FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Editora Global, 49ª Ed. São Paulo. 2004.

 Os indígenas na obra Casa-Grande e Senzala

         Em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre se propõe a fazer uma análise da formação da família brasileira. Para tanto, enumera detalhadamente ao longo de todo o livro as possíveis influências dos diversos povos que contribuíram para sua formação, destacando como elemento fundamental a miscigenação racial.

Freyre considera que no Brasil predominou, para a formação étnica e cultural de sua sociedade, a democracia racial. Sob sua óptica, os povos nativos das terras do “Novo Mundo”, os colonizadores portugueses e os negros trazidos da África como escravos contribuíram de forma praticamente harmoniosa para a constituição dos hábitos e costumes da sociedade patriarcal brasileira. Isso se vê claramente quando argumenta, ainda no prefácio da obra, que “[...] a miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala [...]”. (FREYRE, 2004: p. 33)

Tal perspectiva foi duramente criticada por seus comentadores, pois desconsidera, na maior parte das vezes, os intensos conflitos ocorridos entre essas diferentes culturas. Sob tal visão, não se percebe as imposições e as transformações de costumes. Pode-se mesmo dizer que a visão de Freyre é ainda carregada pelo olhar etnocêntrico do “civilizador” europeu e não é capaz de perceber, ou não o quis, as resistências e as disputas ocorridas nesse processo.

Além disso, Freyre considera, ainda, a casa-grande como lugar de excelência da manifestação do caráter brasileiro:

Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social [...]. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido” [...]. (FREYRE, 2004: p. 45).

A passagem acima evidencia muito do pensamento de Gilberto Freyre. Primeiramente, mostra a importância atribuída por ele à estrutura agrária instalada no país e seu modelo arquitetônico e administrativo. A casa-grande era residência, sede administrativa do engenho concebido como um modelo feudal, o “lugar de poder”3 para o senhor, e é em seus domínios que Freyre lança seu olhar. Além disso, manifesta sua intenção de resgate histórico das “tradições brasileiras”; tentativa de buscar o “tempo perdido”.

            No entanto, é preciso destacar um aspecto positivo e inovador da obra de Freyre. Ele aborda com profundidade um aspecto da história que hoje é chamado de história do cotidiano, analisando os ritos religiosos ou místicos, a culinária, a higiene, entre outros aspectos.

Assim, após apresentar as condições gerais do contato entre as diferentes raças no Brasil, o autor destaca um capítulo de seu livro para apresentar as influências deixadas pelas nações indígenas para seus descentes miscigenados, analisando muito da cultura dos caboclos do Norte e do Nordeste brasileiros.

Ao dissertar sobre os indígenas, Gilberto Freyre é extremamente etnocêntrico e os apresenta como povos atrasados, sem desenvolvimento técnico ou militar, chegando ao ponto de compará-los a crianças sem maturidade como se pode observar: 

De modo que não é o encontro de uma cultura exuberante de maturidade com outra já adolescente, que aqui se verifica; a colonização européia vem surpreender nesta parte da América quase que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e incipiente; ainda na primeira dentição; sem os ossos nem o desenvolvimento nem a resistência das grandes semi-civilizações americanas. (FREYRE, 2004: p. 158)

         A incapacidade de defesa observada pelo autor chegava a tal ponto que não despertou nos conquistadores um desejo ou necessidade de extermínio, mas sim de aproveitamento dos sujeitos aqui encontrados. Para Freyre, “[...] não houve da parte dele [o indígena brasileiro] capacidade técnica ou política de reação que excitasse no branco a política do extermínio seguida pelos espanhóis no México e no Peru [...]”. (FREYRE, 2004: p. 159)

Não sendo necessário o extermínio desses povos, pelo contrário, o processo de colonização das novas terras se deu, a princípio, com recorrente união entre europeus e indígenas. Essas uniões podem ser interpretadas desde os conhecidos acordos econômicos onde trocavam bugigangas por produtos de origem tropical, principalmente o pau-brasil, até casamentos, lícitos ou não, entre esses indivíduos. Sobre essa tendência à mistura, o autor afirma:

Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa, a do conquistador com a do conquistado. Organizou-se uma sociedade cristã na superestrutura, com a mulher indígena, recém-batizada, por esposa e mãe de família; e servindo-se em sua economia e vida doméstica de muitas das tradições, experiências e utensílios da gente autóctone. (FREYRE, 2004: p. 160)

 Esse trecho explicita a idéia de democracia racial comentada anteriormente. Mas, ao mesmo tempo em que reconhece a influência da cultura indígena, o faz sob a visão do colonizador. A cultura nativa foi absorvida pela dominante, preservando alguns traços domésticos de suas manifestações. E é sobre essas manifestações cotidianas e principalmente caseiras onde Freyre aponta tais influências. Destaca, assim, o papel da mulher índia na preservação desses hábitos.

No restante do capítulo, o autor busca identificar nos hábitos das populações caboclas do norte e do nordeste do Brasil as reminiscências das antigas tradições indígenas. Ele minimiza a influência do homem indígena na formação da sociedade brasileira. Para ele, sua contribuição “[...] foi formidável: mas só na obra de devastação e de conquista dos sertões, de que ele o guia, o canoeiro, o guerreiro, o caçador e pescador [...]”. (FREYRE, 2004: p. 163)

Ainda quanto ao aspecto da miscigenação, o indígena é apresentado como um ser propenso a uniões exogâmicas, devido ser, de modo geral, também poligâmico. Por um lado, essa característica ajudou na difusão da colonização, uma vez que muitos colonos se uniram às índias. Para tanto, considere-se que, na maioria das vezes, era essa a única opção aos europeus. Por outro lado, a poligamia foi uma das características culturais mais combatidas pelos padres da Companhia de Jesus no Brasil.

Da união do colonizador com a mulher índia foi que surgiu o caboclo, o primeiro ser com características que viriam a ser uma representação do brasileiro nortista. Por conta de seu papel, Gilberto Freyre afirma que:

Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso, o cabelo brilhante de loção ou óleo de coco, reflete a influência de tão remotas avós. (FREYRE, 2004: p. 164)


Entre outras características apresentadas de influência indígena no povo brasileiro está o totemismo e possíveis superstições como o uso de amuletos da sorte. Como exemplo de tal afirmação, Freyre destaca o uso predominante da cor vermelha entre os povos do norte do Brasil. Na cultura indígena, pintar o corpo de vermelho protegia contra os maus espíritos. Chegava-se inclusive a pintar os recém nascidos com fins profiláticos, uma vez que se acreditava que as doenças eram causadas por espíritos maus.

Pode-se citar também o uso de plantas medicinais como herança dos costumes indígenas para o tratamento de doenças. Limitou a influência, talvez, desse conhecimento profilático a relação estabelecida pelos padres e os curandeiros e pajés, adotando os primeiros uma política de intenso combate às figuras destes últimos.

Sob o aspecto da influência dos jesuítas no processo de integração/absorção/destruição da cultura indígena, podemos citar o combate à poligamia, como retro citado, a insistência ao uso de roupas, e principalmente, o fim das práticas totêmicas e fetichistas. Os jesuítas tentaram, pois, inculcar hábitos e vestimentas europeus aos indígenas:

O vestuário imposto aos indígenas pelos missionários europeus vem afetar neles noções tradicionais de moral e higiene, difíceis de substituírem por novas. É assim que se observa a tendência, e muitos dos indivíduos de tribos acostumadas à nudez, para só se desfazerem da roupa européia quando esta só falta largar de podre ou de suja. Entretanto, são povos de um asseio corporal e até de uma moral sexual às vezes superior à daqueles que o pudor cristão faz cobrirem-se de pesadas vestes. (FREYRE, 2004: pp. 180-181)

Para essa transformação se tornar realidade, fez-se necessária uma prática efetiva de controle e vigilância. Para tanto, utilizou-se a figura dos pequenos índios, os curumins, para levar os costumes ensinados pelos padres para dentro das habitações indígenas. Assim, além da mulher, o pequeno índio também teve papel preponderante no processo de “civilização” do gentio.

Desses curumins, Freyre destaca a reminiscência dos jogos, das brincadeiras e das lendas. Dos medos de espíritos e bichos da floresta. Dessas lendas, destacam-se algumas como o curupira ou a caipora, bicho papão, etc., como se pode observar:

Outros traços de vida elementar, primitiva, subsistem na cultura brasileira. Além do medo, que já mencionamos, de bicho e de monstro, outros pavores, igualmente elementares, comum ao brasileiro, principalmente à criança, indicam estarmos próximos da floresta tropical como, talvez, nenhum povo moderno civilizado. (...) O brasileiro é por excelência o povo da crença no sobrenatural: em tudo o que nos rodeia sentimos o toque de influências estranhas; de vez em quando os jornais revelam casos de aparições, mal-assombrados, encantamentos. Daí o sucesso em nosso meio do alto e baixo espiritismo. (FREYRE, 2004: p. 212).

     Assim, observamos que, para Freyre, a influência indígena se resume a aspectos cotidianos de nossa cultura, como os jogos de crianças, as brincadeiras de roda, alguns pratos de nossa culinária, em especial o uso da mandioca e do milho, e o gosto pelo banho, além de superstições herdadas das antigas práticas totêmicas.

     Se sua obra apresenta pontos superados sobre o aspecto da miscigenação, merece ainda total respeito dos leitores leigos e críticos, uma vez que inova ao abordar o cotidiano numa análise histórico-antropológica e ao observar, pela primeira vez no Brasil, a miscigenação como um aspecto positivo da sociedade brasileira, embora deva-se resguardar sob quais condições.