Quando a mulher se entende com um útero, possuidora de um órgão que pode
gerar outro ser dentro de si, sente em algum momento o dilema de querer ou não
experimentar a sensação de gerar um filho. Daí é viver a dicotomia do cuidado e medo de engravidar cedo demais e mais tarde a angustiante
contagem regressiva de um “relógio biológico”, como se tivéssemos um prazo de validade prestes à expirar. Esse
dilema vem acompanhado de muitas questões e influências, principalmente ligadas
à nossa socialização e modelo de sociedade que estamos inseridas.
Para a
maioria de nós, a maternidade é romantizada, é pintada de rosa todos os dias
desde nossas brincadeiras de cuidar de bonecas até os filmes, animações, novelas e séries
que transmitem a imagem do final feliz da mulher sendo mãe e formando uma família com seu príncipe encantado. A mulher
que ousa apontar as desvantagens e crises reais do ser mãe e desse ideal
perfeito de família tradicional é castigada por subverter essa ordem, recebe julgamentos
depreciativos como amargurada, ressentida, mal-amada, frustrada, louca, doente.
É preciso muita coragem pra contrapor a ordem vigente!
“Ser mãe é padecer no
paraíso” escutamos desde cedo. O paraíso, eu como mãe posso afirmar, é o amor
de uma criança, sentir o amor de uma criança é algo sem igual, sentir no olhar,
no sorriso, nos gestos mais verdadeiros e sinceros que aquele serzinho tão
pequeno e tão incrível, te ama de forma honesta e pura. Mas
ouso dizer que esse amor, o de mãe, da maternidade, não é o maior, nem o mais
intenso e único, é o amor da criança que te causa essa sensação.
O amor de quem
cuida e convive com uma criança intensamente, de quem é responsável por sua
vida, uma tia, um tio, uma avó, um avô, padrasto, madrasta, ou até de alguém
sem parentesco algum, pode ser tão intenso e protetor quanto de uma mãe. O amor
nasce da convivência. Tu experimentas esse amor, por exemplo, quando tá na rua,
passa por brinquedinhos de um camelô e já lembra da criança, quando sente
saudade, quando se preocupa na doença, não quer vê-la sofrer e morre de medo de
perder essa criaturinha. Enfim, acredito que esse amor pode ser experimentado
na mesma dimensão, independente de ser mãe.
Outra situação são das mães que não sentem esse amor, seja por sofrerem com a depressão pós parto ou surpreendidas pela alta carga de demandas e responsabilidades que um bebê exige. A mulher se vê em crise, pelos julgamentos ou por sentir-se horrenda e monstruosa ao não corresponder essa lógica do "amor maior do mundo", por vezes não se percebem adoecidas e só intensificam seu estado de dor ao não buscar ajuda profissional. O mesmo julgamento cruel se dá com mães que abandonam os filhos, ao não considerar os fatores psicológicos, hormonais, sociais e estruturais que podem ter levado a essa atitude. Cada ser é único e experimenta as sensações de forma diferenciada, por isso a importância de parecer de especialistas ao invés de achismos ou execrações.
O amor, para além do
sentimento, também é uma construção social, deste modo, o amor e o instinto
materno nem sempre existiram nesses moldes na história da humanidade. A
maternidade compulsória foi incorporada à nossa cultura com objetivos definidos
e a coerção social, conceito de Durkheim, é um mecanismo utilizado na
manutenção da cultura da maternidade compulsória, pois no modelo capitalista
quanto maior for o excedente de mão de obra, maior também é a possibilidade de
exploração dos seres humanos, que irão se submeter a qualquer oferta de
trabalho por sua subsistência.
Mulheres são as máquinas reprodutoras de mão de
obra. A sociedade pressiona de diversas maneiras as mulheres para que sejam mães e formem família, tendo a romantização como arma das mais poderosas, que passa a ser utilizada de forma mais contundente a partir da queda da cultura dos casamentos
arranjados nas sociedades ocidentais, em que entra em cena a união por amor, e
o avanço da ciência com os métodos contraceptivos, que vieram a permitir à
mulher escolher. Para manutenção da ordem, se faz necessário influenciar nessa
escolha.
O romantismo nasce entre os séculos XVIII e XIX na Europa, junto com a transição para o sistema capitalista e pelas mãos da burguesia. E o dia das mães se oficializou no Brasil em meio ao seu processo tardio de formação do Estado capitalista
industrial, início do século XX, e em sua comercialização, além do
aquecimento da economia e do comércio, é vendido às mulheres que não existe
amor igual ao de mãe, e a mulher que não vir a experimentar esse amor será
incompleta, infeliz, sem amor, seca, e as que se negarem ser mães serão
acusadas de egoístas.
É com essa pressão que as mulheres que optam por não ter
filhos têm que conviver e algumas acabam por ceder, arrependendo-se mais tarde.
E as mulheres que não podem gerar filhos sofrem também com essa pressão, se
culpam e se martirizam pelo castigo de nunca poderem sentir esse amor. Poderiam
adotar uma criança, mas vem os argumentos de que não é a mesma coisa, tem que
ter meu sangue, meu DNA, o do pai também, e um monte de imposição que só levam a
um caminho: a mulher como ser reprodutor.
Controlando nossos úteros e nossas
decisões, somos conduzidas à reproduzir a qualquer custo. Outra ferramenta que
reforça é a religião, na maioria cristãs, que encorajam o não uso de métodos
contraceptivos, pois interromper a reprodução humana configura "pecado", no
máximo uso da tabelinha e abstinência sexual, que além de pouco eficazes, não previnem de DSTs.
A realidade é que a mesma
sociedade que nos empurra para a maternidade é a mesma que depois não vai nos
dar uma lata de leite e nem cuidarão da criança para que a mãe possa trabalhar,
estudar, viver. Aliás, viver é algo que não pertence às mães, pois a vida delas agora
pertence aos filhos. “Meus filhos são a minha vida!” já ouviu isso? A anulação
feminina com a maternidade é tão natural que torna-se imperceptível.
A maternidade é muitas
vezes solitária. Uma criança exige atenção o tempo inteiro e essa atenção
compulsoriamente é responsabilidade da mãe, pois “quem pariu Mateus que o
embale”. Quer sair pra tomar um chopp com as amigas, mas tem um bebê? Vai
passar por julgamento com certeza, mãe não tem direito ao lazer, maternidade é
padecer, lembra? E isso se conseguir alguém pra “embalar o Mateus”.
“Mas se a criação for
compartilhada com o pai e se tiver rede de apoio é mais leve!” Não é bem assim.
Primeiro que mesmo com rede de apoio, ainda vai recair na mulher o maior peso
da responsabilidade por tudo, e dinheiro não será impeditivo de sofrer com o
machismo, os julgamentos e pitacos serão uma constante. E na real, na maioria, mulheres e
famílias não têm condições de pagar por uma rede de apoio, restando muitas
vezes para a mulher abrir mão do emprego ou entregar para a avó cumprir esse
papel “por amor”. O cuidado feminino é pago com “amor”.
Por amor, mulheres cuidam
da casa, da família, do marido, reproduzem mão de obra e criam pra entregar ao
mercado, tudo isso sem remuneração, pois as tarefas domésticas não são vistas
da mesma maneira que um trabalho formal, são vistas como cuidado, como amor, e
o cuidado pertence às mulheres. O capitalismo e o patriarcado dependem desse trabalho.
Ao interseccionar com raça e classe, observamos que as mulheres negras e pobres
são as que mais assumem esse papel e de forma dupla, pois cuidam das suas crias
e das de quem são pagas para cuidar, como babás e empregadas, com remunerações
baixas e poucos direitos, lembrando que outrora, no período escravagista, nem
remuneração havia. Não à toa a sociedade brasileira, racista e saudosa da
escravidão, reagiu com muitas críticas em 2015 à legislação do trabalho
doméstico.
Neste sentido, por
vivermos numa sociedade estruturalmente machista e racista, não se consegue
compartilhar de igual pra igual a responsabilidade de mãe e pai com sua cria,
nosso papel consolidado de cuidadora nos faz naturalmente assumir maiores
cargas de atenção do que o pai, e muitas vezes sem nem percebermos, nos
culpamos se nos ausentamos e falhamos nesse papel. O peso da responsabilidade
não é o mesmo, seja por preguiça e relaxo desse homem, seja pela conveniência
que eles têm de não terem sido socializados da mesma forma que nós, e por mais
maravilhoso e participativo que seja esse pai, muitas vezes nos vemos cara a
cara com a solidão.
A solidão de quando ele
sai pra trabalhar e estamos integralmente com uma criança em casa. A solidão de
dar conta de tarefas que eles se negam a assumir, seja com a desculpa de não
possuir habilidade, de que a mulher faz melhor, que está cansado do trabalho,
mesmo que a mulher também tenha um emprego, ela não tem direito ao descanso. A
solidão de não sermos lembradas pelas amigas e amigos quando estamos com uma
criança. Ninguém quer fazer programa com quem tem criança, a não ser as amigas
mães que estão na mesma, daí dá-se as mãos e se ajudam, e se a mãe for casada
ainda é esquecida pelas amigas mães solos muitas vezes, por ter guardada a
impressão de que a casada não está sozinha, ela tem uma família, tem um marido,
tem companhia.
Agora amigo pai pra fazer o mesmo, ainda não vi. Até porque
raras vezes a gente vai ver um pai completamente sozinho com crias, eles sempre
estão acompanhados e nem precisam nos procurar pra esse apoio. Observe por
exemplo num parquinho quantas crianças estão acompanhadas de um homem sozinho e
quantas estão com uma mulher sozinha. Eles quando estão no parquinho sempre têm
companhia, mas muitas mulheres não.
Um homem pai sozinho é
rapidamente assessorado, é visto como herói, de tão raros que são. A esposa, a
mãe, a sogra, a namorada, a amante, uma amiga, sempre alguém se compadece
de um homem sozinho com uma criança, inclusive ajudam por preocupação com a
criança também, já que o papel de cuidado não pertence aos homens e a criança pode
estar assim malcuidada. A não ser que ele negue essa ajuda feminina e resolva
assumir tudo sozinho, o que é bem raro também, chega a ser exceção, pois sentem
o peso da solidão, da responsabilidade e rapidamente podem vir aceitar as
ofertas femininas de cuidado.
É uma vantagem que não se enxerga, porque é naturalizada.
Para a mãe, resta a força pra dar conta de tudo, o estigma das mulheres
guerreiras. E quando entram em colapso pela sobrecarga, adoecem depressivas,
são mais uma vez julgadas como fracas ou cruéis, egoístas por negarem-se
a dar conta dessa missão divinal, uma fracassada.
Se chegaste até aqui, mana, deixo minhas sugestões: Se tu queres ser mãe, pesa tudo, pense no orçamento, nas atividades
que deixará de exercer temporariamente por causa da criança, das anulações,
leva alguns anos da vida. Se deseja dividir a criação com o pai na
mesma casa, precisa pesar também a convivência com um homem, porque no final de
tudo a carga maior vai ser tua, por mais alecrim dourado que ele seja, não tem
como escapar disso porque a sociedade toda é estruturada pra ser assim, com o
peso pesado para as mães, e a não ser que ele seja um ET, ele foi criado e
socializado nesse mundo, com papeis definidos para homens e mulheres. E no momento que apertar peça ajuda, pois tu podes adoecer em
qualquer momento, ou não.
Se o casamento pesar mais que a maternidade, te causar mais
problemas e infelicidade, caia fora! Por mais difícil que seja ou o tempo que
leve, te organiza e vai embora, em algumas situações é caso de vida ou morte,
infelizmente, mas pode ter certeza que vais dar conta muito melhor da tua vida
e da maternidade sem esse peso!
Se tu NÃO queres ser mãe,
mantenha firme tua decisão. Não mude de ideia pra agradar quem quer que seja,
principalmente homem, só se for tua vontade mesmo, não imposição. Não ceda,
porque depois na solidão vai bater o arrependimento, não do amor da criança,
mas das anulações e privações que tu decididamente já estavas disposta a não querer
passar e vais te amargurar por isso, sem volta. Se vier a engravidar mesmo assim, pese bem a decisão, pois é teu corpo e tua vida que vai mudar.
Importante entender que filhos
não são poupanças para o futuro, nem posses, objetos ou em quem depositamos
nossos desejos não realizados, é incerto apostar no “quem vai cuidar de mim na
velhice”, seja pelo medo de ficar só, ou o filho vai se dar bem e te bancar,
enfim, um mundo de expectativas e responsabilidades num ser que sequer pediu
pra nascer. Filhos seguem a vida e não temos como controlar seus destinos. Medo
de ficar só nos mete em ciladas, cuidado! Não há nada de aterrorizante em morar
sozinha, nem de fracasso ou amargura, cultive sua autonomia, amor próprio e
seja feliz!
Se tu queres ser mãe, já
ciente de tudo que foi dito aqui, mas não consegue engravidar, adote uma
criança, não exite! O amor é idêntico, é o amor de uma criança cuidada por ti,
que vai te chamar de mãe do mesmo jeito. Sempre digo à minha filha que tudo que
a gente cuida bem e dá amor fica bem, e sempre nos responde de alguma forma.
Nossas plantas ficam bonitas, dão flores se bem cuidadas, e uma criança dá o
amor mais puro, independente se saiu ou não da tua barriga.
Nem cair em
conversa de que a criança adotada pode vir com personalidade do pai ou mãe que tu
sequer conheces. Caráter não vem em DNA, o ser humano é moldado em sociedade,
de acordo com o núcleo social que vive, ele vê e repete, e assim como é moldado
em casa, pela família, a sociedade também molda e apresenta diversas
perspectivas, e mais uma vez não temos controle. Filhos podem ser bons ou ruins
adotivos ou não.
E se não pode gerar e também não quer, não se martirize, nem se deixe abater. É difícil, mas infelizmente é essa a vida, precisamos nos defender e tentar viver da melhor forma. A maternidade compulsória, bem como a imposição do conceito de família tradicional, podem levar à realidade de violência, irritabilidade e frustrações. Uma criança precisa ser muito desejada e planejada, pois exige altas cargas de paciência, amor e estrutura para sua educação.
Que possamos refletir
mais sobre essa escolha e que não nos permitamos adoecer por coerções sociais.
Vamos sentir culpa, sendo mães ou não, por isso é importante ter noção da
estrutura que nos dita as regras para não cair no jogo, assumindo culpas que
não nos pertence, são impostas. Que nossos corpos e nossas decisões sejam
livres! Força sempre às mulheres, é urgente descolonizar nossos afetos!