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domingo, 21 de fevereiro de 2021

Maternidade: amor, solidão, imposição

Quando a mulher se entende com um útero, possuidora de um órgão que pode gerar outro ser dentro de si, sente em algum momento o dilema de querer ou não experimentar a sensação de gerar um filho. Daí é viver a dicotomia do cuidado e medo de engravidar cedo demais e mais tarde a angustiante contagem regressiva de um “relógio biológico”, como se tivéssemos um prazo de validade prestes à expirar. Esse dilema vem acompanhado de muitas questões e influências, principalmente ligadas à nossa socialização e modelo de sociedade que estamos inseridas. 

Para a maioria de nós, a maternidade é romantizada, é pintada de rosa todos os dias desde nossas brincadeiras de cuidar de bonecas até os filmes, animações, novelas e séries que transmitem a imagem do final feliz da mulher sendo mãe e formando uma família com seu príncipe encantado. A mulher que ousa apontar as desvantagens e crises reais do ser mãe e desse ideal perfeito de família tradicional é castigada por subverter essa ordem, recebe julgamentos depreciativos como amargurada, ressentida, mal-amada, frustrada, louca, doente. É preciso muita coragem pra contrapor a ordem vigente!

“Ser mãe é padecer no paraíso” escutamos desde cedo. O paraíso, eu como mãe posso afirmar, é o amor de uma criança, sentir o amor de uma criança é algo sem igual, sentir no olhar, no sorriso, nos gestos mais verdadeiros e sinceros que aquele serzinho tão pequeno e tão incrível, te ama de forma honesta e pura. Mas ouso dizer que esse amor, o de mãe, da maternidade, não é o maior, nem o mais intenso e único, é o amor da criança que te causa essa sensação. 

O amor de quem cuida e convive com uma criança intensamente, de quem é responsável por sua vida, uma tia, um tio, uma avó, um avô, padrasto, madrasta, ou até de alguém sem parentesco algum, pode ser tão intenso e protetor quanto de uma mãe. O amor nasce da convivência. Tu experimentas esse amor, por exemplo, quando tá na rua, passa por brinquedinhos de um camelô e já lembra da criança, quando sente saudade, quando se preocupa na doença, não quer vê-la sofrer e morre de medo de perder essa criaturinha. Enfim, acredito que esse amor pode ser experimentado na mesma dimensão, independente de ser mãe.

Outra situação são das mães que não sentem esse amor, seja por sofrerem com a depressão pós parto ou surpreendidas pela alta carga de demandas e responsabilidades que um bebê exige. A mulher se vê em crise, pelos julgamentos ou por sentir-se horrenda e monstruosa ao não corresponder essa lógica do "amor maior do mundo", por vezes não se percebem adoecidas e só intensificam seu estado de dor ao não buscar ajuda profissional. O mesmo julgamento cruel se dá com mães que abandonam os filhos, ao não considerar os fatores psicológicos, hormonais, sociais e estruturais que podem ter levado a essa atitude. Cada ser é único e experimenta as sensações de forma diferenciada, por isso a importância de parecer de especialistas ao invés de achismos ou execrações.

O amor, para além do sentimento, também é uma construção social, deste modo, o amor e o instinto materno nem sempre existiram nesses moldes na história da humanidade. A maternidade compulsória foi incorporada à nossa cultura com objetivos definidos e a coerção social, conceito de Durkheim, é um mecanismo utilizado na manutenção da cultura da maternidade compulsória, pois no modelo capitalista quanto maior for o excedente de mão de obra, maior também é a possibilidade de exploração dos seres humanos, que irão se submeter a qualquer oferta de trabalho por sua subsistência. 

Mulheres são as máquinas reprodutoras de mão de obra. A sociedade pressiona de diversas maneiras as mulheres para que sejam mães e formem família, tendo a romantização como arma das mais poderosas, que passa a ser utilizada de forma mais contundente a partir da queda da cultura dos casamentos arranjados nas sociedades ocidentais, em que entra em cena a união por amor, e o avanço da ciência com os métodos contraceptivos, que vieram a permitir à mulher escolher. Para manutenção da ordem, se faz necessário influenciar nessa escolha.

O romantismo nasce entre os séculos XVIII e XIX na Europa, junto com a transição para o sistema capitalista e pelas mãos da burguesia. E o dia das mães se oficializou no Brasil em meio ao seu processo tardio de formação do Estado capitalista industrial, início do século XX, e em sua comercialização, além do aquecimento da economia e do comércio, é vendido às mulheres que não existe amor igual ao de mãe, e a mulher que não vir a experimentar esse amor será incompleta, infeliz, sem amor, seca, e as que se negarem ser mães serão acusadas de egoístas. 

É com essa pressão que as mulheres que optam por não ter filhos têm que conviver e algumas acabam por ceder, arrependendo-se mais tarde. E as mulheres que não podem gerar filhos sofrem também com essa pressão, se culpam e se martirizam pelo castigo de nunca poderem sentir esse amor. Poderiam adotar uma criança, mas vem os argumentos de que não é a mesma coisa, tem que ter meu sangue, meu DNA, o do pai também, e um monte de imposição que só levam a um caminho: a mulher como ser reprodutor. 

Controlando nossos úteros e nossas decisões, somos conduzidas à reproduzir a qualquer custo. Outra ferramenta que reforça é a religião, na maioria cristãs, que encorajam o não uso de métodos contraceptivos, pois interromper a reprodução humana configura "pecado", no máximo uso da tabelinha e abstinência sexual, que além de pouco eficazes, não previnem de DSTs.

A realidade é que a mesma sociedade que nos empurra para a maternidade é a mesma que depois não vai nos dar uma lata de leite e nem cuidarão da criança para que a mãe possa trabalhar, estudar, viver. Aliás, viver é algo que não pertence às mães, pois a vida delas agora pertence aos filhos. “Meus filhos são a minha vida!” já ouviu isso? A anulação feminina com a maternidade é tão natural que torna-se imperceptível.

A maternidade é muitas vezes solitária. Uma criança exige atenção o tempo inteiro e essa atenção compulsoriamente é responsabilidade da mãe, pois “quem pariu Mateus que o embale”. Quer sair pra tomar um chopp com as amigas, mas tem um bebê? Vai passar por julgamento com certeza, mãe não tem direito ao lazer, maternidade é padecer, lembra? E isso se conseguir alguém pra “embalar o Mateus”.

“Mas se a criação for compartilhada com o pai e se tiver rede de apoio é mais leve!” Não é bem assim. Primeiro que mesmo com rede de apoio, ainda vai recair na mulher o maior peso da responsabilidade por tudo, e dinheiro não será impeditivo de sofrer com o machismo, os julgamentos e pitacos serão uma constante. E na real, na maioria, mulheres e famílias não têm condições de pagar por uma rede de apoio, restando muitas vezes para a mulher abrir mão do emprego ou entregar para a avó cumprir esse papel “por amor”. O cuidado feminino é pago com “amor”.

Por amor, mulheres cuidam da casa, da família, do marido, reproduzem mão de obra e criam pra entregar ao mercado, tudo isso sem remuneração, pois as tarefas domésticas não são vistas da mesma maneira que um trabalho formal, são vistas como cuidado, como amor, e o cuidado pertence às mulheres. O capitalismo e o patriarcado dependem desse trabalho. 

Ao interseccionar com raça e classe, observamos que as mulheres negras e pobres são as que mais assumem esse papel e de forma dupla, pois cuidam das suas crias e das de quem são pagas para cuidar, como babás e empregadas, com remunerações baixas e poucos direitos, lembrando que outrora, no período escravagista, nem remuneração havia. Não à toa a sociedade brasileira, racista e saudosa da escravidão, reagiu com muitas críticas em 2015 à legislação do trabalho doméstico.

Neste sentido, por vivermos numa sociedade estruturalmente machista e racista, não se consegue compartilhar de igual pra igual a responsabilidade de mãe e pai com sua cria, nosso papel consolidado de cuidadora nos faz naturalmente assumir maiores cargas de atenção do que o pai, e muitas vezes sem nem percebermos, nos culpamos se nos ausentamos e falhamos nesse papel. O peso da responsabilidade não é o mesmo, seja por preguiça e relaxo desse homem, seja pela conveniência que eles têm de não terem sido socializados da mesma forma que nós, e por mais maravilhoso e participativo que seja esse pai, muitas vezes nos vemos cara a cara com a solidão.

A solidão de quando ele sai pra trabalhar e estamos integralmente com uma criança em casa. A solidão de dar conta de tarefas que eles se negam a assumir, seja com a desculpa de não possuir habilidade, de que a mulher faz melhor, que está cansado do trabalho, mesmo que a mulher também tenha um emprego, ela não tem direito ao descanso. A solidão de não sermos lembradas pelas amigas e amigos quando estamos com uma criança. Ninguém quer fazer programa com quem tem criança, a não ser as amigas mães que estão na mesma, daí dá-se as mãos e se ajudam, e se a mãe for casada ainda é esquecida pelas amigas mães solos muitas vezes, por ter guardada a impressão de que a casada não está sozinha, ela tem uma família, tem um marido, tem companhia. 

Agora amigo pai pra fazer o mesmo, ainda não vi. Até porque raras vezes a gente vai ver um pai completamente sozinho com crias, eles sempre estão acompanhados e nem precisam nos procurar pra esse apoio. Observe por exemplo num parquinho quantas crianças estão acompanhadas de um homem sozinho e quantas estão com uma mulher sozinha. Eles quando estão no parquinho sempre têm companhia, mas muitas mulheres não.

Um homem pai sozinho é rapidamente assessorado, é visto como herói, de tão raros que são. A esposa, a mãe, a sogra, a namorada, a amante, uma amiga, sempre alguém se compadece de um homem sozinho com uma criança, inclusive ajudam por preocupação com a criança também, já que o papel de cuidado não pertence aos homens e a criança pode estar assim malcuidada. A não ser que ele negue essa ajuda feminina e resolva assumir tudo sozinho, o que é bem raro também, chega a ser exceção, pois sentem o peso da solidão, da responsabilidade e rapidamente podem vir aceitar as ofertas femininas de cuidado. 

É uma vantagem que não se enxerga, porque é naturalizada. Para a mãe, resta a força pra dar conta de tudo, o estigma das mulheres guerreiras. E quando entram em colapso pela sobrecarga, adoecem depressivas, são mais uma vez julgadas como fracas ou cruéis, egoístas por negarem-se a dar conta dessa missão divinal, uma fracassada.

Se chegaste até aqui, mana, deixo minhas sugestões: Se tu queres ser mãe, pesa tudo, pense no orçamento, nas atividades que deixará de exercer temporariamente por causa da criança, das anulações, leva alguns anos da vida. Se deseja dividir a criação com o pai na mesma casa, precisa pesar também a convivência com um homem, porque no final de tudo a carga maior vai ser tua, por mais alecrim dourado que ele seja, não tem como escapar disso porque a sociedade toda é estruturada pra ser assim, com o peso pesado para as mães, e a não ser que ele seja um ET, ele foi criado e socializado nesse mundo, com papeis definidos para homens e mulheres. E no momento que apertar peça ajuda, pois tu podes adoecer em qualquer momento, ou não. 

Se o casamento pesar mais que a maternidade, te causar mais problemas e infelicidade, caia fora! Por mais difícil que seja ou o tempo que leve, te organiza e vai embora, em algumas situações é caso de vida ou morte, infelizmente, mas pode ter certeza que vais dar conta muito melhor da tua vida e da maternidade sem esse peso!

Se tu NÃO queres ser mãe, mantenha firme tua decisão. Não mude de ideia pra agradar quem quer que seja, principalmente homem, só se for tua vontade mesmo, não imposição. Não ceda, porque depois na solidão vai bater o arrependimento, não do amor da criança, mas das anulações e privações que tu decididamente já estavas disposta a não querer passar e vais te amargurar por isso, sem volta. Se vier a engravidar mesmo assim, pese bem a decisão, pois é teu corpo e tua vida que vai mudar.

Importante entender que filhos não são poupanças para o futuro, nem posses, objetos ou em quem depositamos nossos desejos não realizados, é incerto apostar no “quem vai cuidar de mim na velhice”, seja pelo medo de ficar só, ou o filho vai se dar bem e te bancar, enfim, um mundo de expectativas e responsabilidades num ser que sequer pediu pra nascer. Filhos seguem a vida e não temos como controlar seus destinos. Medo de ficar só nos mete em ciladas, cuidado! Não há nada de aterrorizante em morar sozinha, nem de fracasso ou amargura, cultive sua autonomia, amor próprio e seja feliz!

Se tu queres ser mãe, já ciente de tudo que foi dito aqui, mas não consegue engravidar, adote uma criança, não exite! O amor é idêntico, é o amor de uma criança cuidada por ti, que vai te chamar de mãe do mesmo jeito. Sempre digo à minha filha que tudo que a gente cuida bem e dá amor fica bem, e sempre nos responde de alguma forma. Nossas plantas ficam bonitas, dão flores se bem cuidadas, e uma criança dá o amor mais puro, independente se saiu ou não da tua barriga. 

Nem cair em conversa de que a criança adotada pode vir com personalidade do pai ou mãe que tu sequer conheces. Caráter não vem em DNA, o ser humano é moldado em sociedade, de acordo com o núcleo social que vive, ele vê e repete, e assim como é moldado em casa, pela família, a sociedade também molda e apresenta diversas perspectivas, e mais uma vez não temos controle. Filhos podem ser bons ou ruins adotivos ou não.

E se não pode gerar e também não quer, não se martirize, nem se deixe abater. É difícil, mas infelizmente é essa a vida, precisamos nos defender e tentar viver da melhor forma. A maternidade compulsória, bem como a imposição do conceito de família tradicional, podem levar à realidade de violência, irritabilidade e frustrações. Uma criança precisa ser muito desejada e planejada, pois exige altas cargas de paciência, amor e estrutura para sua educação.

Que possamos refletir mais sobre essa escolha e que não nos permitamos adoecer por coerções sociais. Vamos sentir culpa, sendo mães ou não, por isso é importante ter noção da estrutura que nos dita as regras para não cair no jogo, assumindo culpas que não nos pertence, são impostas. Que nossos corpos e nossas decisões sejam livres! Força sempre às mulheres, é urgente descolonizar nossos afetos!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Resumo: A documentação como método de estudo pessoal e diretrizes para leitura, análise e interpretação de textos - Severino

Seguindo com as postagens de minhas produções no curso de mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas da FLACSO - Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais, que iniciei em fevereiro de 2020 com a disciplina "Técnicas de Redação e Pesquisa Científica". Esse material é a primeira tarefa da disciplina e achei ótimo pois nos orienta a ter melhor rendimento nos estudos e leituras através da técnica de documentar suas leituras, um exercício que já vinha fazendo desde a graduação ao dar ouvidos às dicas do Glaydson, pai da minha filhota, enquanto era mestrando e que também fez a leitura sobre metodologia. Agora tenho diversos textos resumidos, resenhados ou fichados que compartilho e mantenho organizado nesse blog. Certeza que é mais trabalhoso documentar que somente fazer a leitura, mas é um trabalho que vale muito a pena!



Resumo de: SEVERINO, A. J. Metodologia do Trabalho Científico.
21 ed. São Paulo: Cortez, 2000.


2º Capítulo: A documentação como método de estudo pessoal

         A eficácia do estudo e da aprendizagem se faz quando são criadas as condições para uma progressiva e contínua assimilação pessoal dos conteúdos, seja qual for a área do conhecimento, sendo necessária uma assimilação qualitativa e seletiva, bem como o entendimento de que se trata de uma tarefa eminentemente pessoal.

A prática da documentação é uma ferramenta importante, pois o saber constitui-se pela reflexão, que exige domínio de uma série de informações, que são adquiridas através da documentação realizada criteriosamente, não sendo suficiente somente ouvir aulas e ler livros clássicos. Este conhecimento ganha valor quando fica à disposição do estudante em qualquer momento da sua vida intelectual, ou seja, traduzido em documentação pessoal, preferencialmente em fichas, especificado em três formas: a documentação temática, a documentação bibliográfica e a documentação geral.

A documentação temática tem por objetivo coletar o que há de relevante para o estudo ou para realizar um trabalho específico, seguindo um plano sistemático com temas e subtemas da área do trabalho em tela, que podem ser tirados também das aulas, conferências ou seminários, bem como as ideias pessoais importantes, para que não se percam com o passar do tempo. As fichas de documentação temática formam um fichário com conhecimentos importantes de um curso, por exemplo, em que cada disciplina e suas partes essenciais determinam os títulos das fichas. Das aulas, os estudantes podem passar os apontamentos mais importantes para as fichas, sistematizando-as, fazendo-se o mesmo com os livros e leituras complementares do curso.

A documentação bibliográfica vem completar a documentação temática, pois estas se organizam com o critério de natureza temática. O fichário de documentação bibliográfica é formado por um conjunto de informações sobre livros, artigos, produções sobre determinados assuntos, proporcionando um rico acervo para os estudos. Deve ser realizada paulatinamente, de acordo com o contato com as leituras ou informes e suas informações transcritas em níveis mais aprofundados. Não há um tamanho padrão para estas fichas, ficando a critério do estudante.

A documentação geral organiza e guarda documentos úteis retirados de fontes perecíveis, como recortes de jornais, revistas, apostilas, etc., sendo arquivados sob títulos classificatórios de seu conteúdo, podendo servir de base para a documentação temática e bibliográfica.

A documentação em folhas de diversos tamanhos, embora dificulte a manipulação, tem a vantagem de permitir a substituição do fichário tipo caixa por pastas-arquivos, classificadores, que facilitam o transporte. Pode fazer o mesmo esquema de organização e classificação, por disciplinas, temas, etc.

O vocabulário técnico linguístico é um conjunto personalizado de termos para necessária compreensão da leitura como para redação, sendo os termos sistematicamente transcritos e explicitados. Por fim, o capítulo encerra com exemplos de ficha de documentação temática.


                 3º Capítulo: Diretrizes para leitura, análise e interpretação de textos


          O capítulo apresenta diretrizes para leitura, análise e interpretação de textos diante das dificuldades enfrentadas pelos estudantes na exata compreensão de textos teóricos, em especial na ciência e filosofia, que acabam por reforçar desânimo e desencanto pelo pensamento teórico. Porém essas dificuldades não são insuperáveis e para tanto é necessário criar condições de abordagem e de inteligibilidade do texto que vão colaborar nesse sentido.

        O autor antes de apresentar essas diretrizes aborda a função dos textos sob a ótica de uma teoria geral da comunicação, partindo da premissa que é através da transmissão de uma mensagem entre um emissor e um receptor que se dá a comunicação, sendo este o esquema geral que a teoria apresenta. O emissor é considerado como uma consciência que transmite uma mensagem para o receptor, outra consciência, deve então ser pensada e depois transmitida, tornando assim o texto-linguagem o intermédio pelo qual duas consciências se comunicam.

        Durante este processo, o homem sofre uma série de interferências pessoais e culturais que podem prejudicar a objetividade da comunicação, sendo necessária certas precauções para garantia dessa objetividade na interpretação da comunicação.

        Em primeiro lugar, delimitar uma unidade de leitura, sendo a unidade um setor do texto que forma uma totalidade de sentido, como um capítulo ou uma seção. Para fins de estudos, a leitura deve ser feita por etapas e de maneira contínua, só passando para a unidade seguinte após terminada a análise da unidade em questão, sendo possível ao final refazer um raciocínio geral do livro, sintetizando-o.

        O passo seguinte é análise textual, que é a primeira abordagem para preparação da leitura, fazendo uma leitura seguida e completa da unidade em estudo, atenta, mas ainda corrida, para assim tomar contato com toda a unidade garantindo uma visão panorâmica de raciocínio do autor, aproveitando para levantar todos os elementos básicos para compreensão do texto, assinalando os pontos passíveis de dúvidas.

        O primeiro esclarecimento é buscar dados a respeito do autor do texto, em seguida o vocabulário, levantando conceitos e termos que são desconhecidos pelo leitor, assim como podem abordar fatos históricos, outros autores e outras doutrinas também desconhecidas, e nesta primeira abordagem todos os elementos precisam ser transcritos numa folha à parte, para pesquisa em dicionários, textos de história, manuais didáticos, bem como outros estudiosos e especialistas da área, configurando assim uma tríplice vantagem: diversifica as atividades no estudo, propicia informações e conhecimentos que passariam despercebidos, por fim possibilita uma leitura mais agradável.

        Isto feito, a análise textual pode se encerrar com uma esquematização do texto, obtendo uma visão de conjunto da unidade, sendo confundido muitas vezes com o resumo do texto, mas este processo não realiza ainda todas as exigências para um resumo lógico do pensamento contido no texto. O esquema permite somente uma visão global do texto.

      A segunda etapa, que é a análise temática, vem dar conta da compreensão da mensagem global, procurando ouvir o autor, apreender sem intervir, fazendo perguntas que trarão em suas respostas essa compreensão. Em primeiro lugar, busca-se revelar o tema ou assunto da unidade, que nem sempre está em seu título, além de captar a perspectiva de abordagem do autor. Em seguida, capta-se a problematização do tema, sendo condição básica para compreensão do texto apreender o que “provocou” o autor. Devidamente captada, busca-se o que o autor fala sobre o tema, como responde a essa problemática, qual sua posição, qual ideia defende, o que deseja demonstrar, sendo revelada assim a ideia central, proposição fundamental ou tese. Na explicitação desta tese deve ser usada sempre uma proposição, uma oração, um juízo completo, não somente uma expressão, como ocorre com o tema. A análise temática é que servirá de base para o resumo ou síntese de um texto.

        A terceira abordagem do texto visando sua interpretação é a análise interpretativa. Na primeira etapa procura-se situar o pensamento geral do autor com o pensamento desenvolvido na unidade, esse pensamento em seguida permite situar o autor no contexto mais amplo da cultura filosófica em geral. Nessas duas etapas ao mesmo tempo busca-se o relacionamento lógico-estático das ideias do autor no conjunto da cultura daquela área, bem como o relacionamento lógico-dinâmico de suas ideias.

        Em seguida, de um ponto de vista estrutural, explicitam-se os pressupostos que o texto implica, que são ideias que nem sempre aparecem evidentes no texto, são princípios que justificam a posição assumida pelo autor muitas vezes. A crítica é o passo seguinte da interpretação, buscando-se a formulação de um juízo crítico, fazendo um julgamento do texto pela sua coerência interna ou sua originalidade, alcance, validade e sua contribuição ao tema.

        A quarta abordagem é a problematização, que visa o levantamento dos problemas para discussão, que podem ser desde problemas textuais até os mais difíceis problemas de interpretação. Importante observar a distinção entre a tarefa de determinação do problema  e a problematização geral do texto, pois esta agora é tomada em sentindo amplo para discussão e reflexão.

        Por fim, a síntese pessoal, resultante da discussão da problemática levantada e a reflexão a que ele conduz, que está ligada a construção lógica de uma redação, sendo um valioso exercício de raciocínio, garantindo o amadurecimento intelectual.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Resenha: Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária - Marilena Chauí

Mais uma tirada do baú do 1º semestre do curso de Ciências Sociais em 2014. Resenha do 2º e do 5º capítulos da obra de Marilena Chauí "Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária", em que são abordadas questões como populismo, a necessidade que temos de "mitos" e como essa cultura foi construída na sociedade brasileira. Depois dessa leitura à época, só me reforçou a ideia de não endeusar qualquer figura política que seja, pois a gente só perpetua essa cultura e jamais consegue quebrá-la. 

Resenha de: "A nação como semióforo" e "Mito Fundador". In: CHAUI, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. 1ª Ed.São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

 A nação como semióforo

Marilena Chaui, em Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária discorre no segundo capítulo “A nação como semióforo” sobre os símbolos e os fatos que formaram a concepção de nação em nosso país, bem como suas causas, mostrando a designação do termo semióforo para dar clareza à nação construída sob esse prisma, dando como significação:

Um semióforo é, pois, um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa ou uma instituição retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e imediata na vida cotidiana porque são coisas providas de significação ou de valor simbólico, capazes de relacionar o visível e o invisível, seja no espaço, seja no tempo, pois o invisível pode ser o sagrado (um espaço além de todo o espaço) ou o passado ou futuro distantes (um tempo sem tempo ou eternidade), e expostos à visibilidade, pois é essa exposição que realizam sua significação e sua existência. (CHAUI, 2000: p.12)

São descritos pela autora o poder que os semióforos exercem sobre a humanidade e por fim a necessidade do poder político construir um semíoforo fundamental, que será o lugar e o guardião dos semíoforos públicos, que é a nação.

No decorrer do texto, trabalha sobre a recente invenção histórica da nação, entendida como Estado-nação, com sua definição pela independência ou soberania política e pela unidade territorial e legal, buscando na história a partir de 1830 essa significação baseada no vocabulário político proposta por Eric Hobsbawm, além das derivações linguísticas.

O ponto de partida dessas elaborações foi, sem dúvida, o surgimento do Estado moderno da “era das revoluções”, definido por um território preferencialmente contínuo, com limites e fronteiras claramente demarcados, agindo política e administrativamente sem sistemas intermediários de dominação, e que precisava do consentimento prático de seus cidadãos válidos para políticas fiscais e ações militares. (CHAUI, 2000: p.16)

A partir deste ponto, a autora discorre sobre a necessidade de um meio de dominação do liberalismo econômico, que não significa ser sinônimo de democracia, e que o Estado-nação vem a ser esse mecanismo, que vem a enfrentar os desafios de incluir todos os habitantes do território na esfera da administração estatal ao tempo que necessita obter a lealdade dos mesmos ao sistema dirigente, em que a luta de classes e a religiosidade disputavam essa lealdade, e desta forma foi surgindo como solução a ideia de nação, em que os economistas nacionais viriam a trabalhar com o conceito de “economia nacional” e “riqueza das nações”.

Porém o estado necessitava de algo além do que a passividade de seus cidadãos, precisava influenciá-los a seu favor, uma religião cívica, chamada patriotismo. No período de 1880-1918 a “religião cívica” transforma o patriotismo em nacionalismo, tornando-se estatal, reforçados com sentimentos e símbolos de uma comunidade imaginária. O século XX com a Revolução Russa, Primeira Guerra Mundial e depressão econômica dos anos 20-30, com o aguçamento da luta de classes deu luz a arrancada mais forte do nacionalismo, o nazi-facismo.

Marilena Chaui aborda de forma enfática que “a nação como semióforo”, a “ideia nacional” é um instrumento unificador que o sistema capitalista utiliza para facilitar a dominação dos povos, sistema este que se viu ameaçado com as lutas populares socialistas, resistência de grupos tradicionais e o surgimento da pequena burguesia, que temia a proletarização e aspirava o aburguesamento.

Porque a luta de classes teve uma capacidade mobilizadora menor que o nacionalismo? Por que até mesmo as revoluções socialistas acabaram assumindo a forma de nacionalismo? Por que a 'questão nacional' parecia ter sentido? […] A possível explicação encontra-se na natureza do Estado moderno como espaço dos sentimentos políticos e das práticas políticas em que a consciência política do cidadão se forma referida à nação e ao civismo, de tal maneira que a distinção entre classe social e nação não é clara e frequentemente está esfumada ou diluída. (CHAUI, 2000: p.20)

Esta situação é, de acordo com a autora, em nosso país vista da melhor forma no processo de nacionalismo das esquerdas no Brasil nos anos 1950-60 e deste ponto passa a discorrer sobre o “caráter nacional brasileiro”, que pode vir de elaborações ideológicas de cunho positivo ou negativo, e a “identidade nacional” que precisa ser concebida como harmonia e/ou tensão entre o plano individual e o social. A primeira tem a nação como formada pela mistura de três raças – índios, negros e brancos – como sociedade mestiça que desconhece o preconceito racial, sendo o negro visto pelo olhar do paternalismo branco, enquanto na segunda o negro é visto como classe social, a dos escravos.

Toda essa construção, de acordo com Marilena Chaui, hoje parece ter perdido sentido, pois enquanto a nação e nacionalismo foram objeto de discursos partidários, programas estatais, lutas civis e guerras mundiais no período de 1830 a 1970, na atualidade deu lugar ao multiculturalismo, do direito à diferença, e a prática econômica neoliberal não apenas tirou da cena política e ideológica as nacionalidades, mas também as colocam como referenciais importantes apenas em países que não tem muito peso em termos de poder econômico ou nacionalidade travejada pela religião.

E desta forma a autora encerra fazendo a crítica a celebração do “Brasil 500”, colocando-o como pertencente ao campo mítico, um semióforo historicamente produzido, tendo como função a reatualização de nosso mito fundador. 

O mito fundador

O 5º capítulo vem tratar das invenções históricas e construções culturais que circundam a história das Américas, mais especificamente do Brasil, primeiramente à época de sua “descoberta” ou “achamento”, período este que configuram os principais elementos para construção de um mito fundador, com o efeito de poder teológico-político, colocado pelo filosofo judeu-holandês Baruch Espinosa.

As grandes navegações, as conquistas e colonização foram parte constituinte do capitalismo mercantil, porém existe o ponto de vista simbólico, que vê as grandes viagens como alargamento das fronteiras do visível e um deslocamento das fronteiras do invisível. Estas viagens não trazem somente novas mercadorias, mas também novos semióforos.

Os escritos medievais consagraram um mito poderoso, as chamadas Ilhas Afortunadas ou Ilhas Bem-aventuradas, lugar abençoado, onde reinam primavera eterna e juventude eterna, onde homem e animais convivem em paz. (CHAUI, 2000: p.59)

Este trecho, aliado a ideia de paraíso colocada pelo livro bíblico de Gênesis, vem fundamentar o texto da autora no sentido da sagração da natureza das Américas, em especial nosso país, que fica evidente nos textos dos navegantes, como a carta de Pero Vaz de Caminha, cartas e diários que impressionam pela descrição de um mundo novo e diverso da Europa.

Chaui faz então o paralelo para os símbolos de nosso país, como nossa bandeira, que é quadricolor, não narra a história do Brasil, um símbolo da natureza, diferente por exemplo da Europa que desde a Revolução Francesa tem bandeiras revolucionárias que tendem a ser tricolores e são insignias das lutas políticas por liberdade, igualdade e fraternidade.

Neste sentido, vem tratar dos efeitos que produz o Brasil-Natureza, fazendo menção à teoria do direito natural subjetivo e objetivo, uma hierarquia de perfeições e poderes desejada por Deus, indicando que a Natureza é constituída por seres que naturalmente se subordinam uns aos outros. Baseado na descrição de Caminha dos habitantes da terra achada como inocentes e sem crença,  os colocando abaixo dos cristãos, foi justificada a escravidão necessárias neste período de colonização, como exigência econômica.

Além dessas teorias, com a escravização de índios e negros se ensina que Deus e o Diabo disputam a Terra do Sol, pois a serpente habitava o paraíso. Surge assim outro efeito da imagem do Brasil-Natureza que é a disputa cósmica entre Deus e o Diabo, sem se referir à divisões sociais, e sim como da própria natureza.

Este efeito perdura no início do século XX com a descrição de “Os sertões” de Euclides da Cunha, substituindo Deus e Diabo pela ciência, através do estudo do clima, geologia e da geografia, presentes em sua obra, dando origem a uma tese de longa persistência, a dos “dois Brasis”, reafirmada pelos integralistas nos anos 20 e 30, colocando em um lado o Brasil litorâneo, caricatura burguesa e letrada da Europa liberal e o Brasil sertanejo, real, pobre analfabeto e inculto.

A autora coloca a história como segundo elemento na produção do mito fundador, a história teológica ou providencialista, da história como realização do plano de Deus ou da vontade divina, esclarecendo o caráter dramático do tempo judaico baseado na vontade de Deus e a relação do homem com Deus, que vem dar forma e sentido à ideia cristã de história, como operação de Deus no tempo.

Esta relação é feita pelo sentido divino dado ao Brasil, como “terra abençoada por Deus”, o paraíso reencontrado, e desta forma seríamos o berço do mundo, o mundo originário e original. “'Brasil, país do futuro' é porque Deus nos ofereceu os signos para conhecermos nosso destino: o Cruzeiro do Sul, que nos protege e orienta, e a Natureza-Paraíso, mãe gentil.” (CHAUI, 2000: p.75)

Um só rebanho, um só pastor. Uma só cabeça, um único cetro e um único diadema. A imagem teológica do poder político se afirma porque encontra no tempo profano sua manifestação: a monarquia absoluta por direito divino dos reis. (CHAUI, 2000: p.79)

Nesta altura do texto, a autora aprofunda sobre a função da monarquia absoluta como sagração do governante na produção do mito fundador, discorrendo sobre o direito divino dos reis como forma de assegurar o pleno controle para manutenção de uma rede intricada de privilégios e poderes estamentais, uma teia de clientelas e favores, corrupção e venalidade.

Um outro efeito pode ser observado se reuinirmos a sagração da história e a sagração do governante. Ao articulá-las, notaremos que o mito fundador opera de modo socialmente diferenciado: do lado dos dominantes, ele opera na produção da visão de seu direito natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito natural por meio das redes de favor e clientela, do ufanismo nacionalista, da ideologia desenvolvimentista e da ideologia da modernização, que são expressões laicizadas da teologia da história providencialista e do governo pela graça de Deus; do lado dos dominados, ele se realiza pela via milenarista com a visão do governante como salvador, e a sacralização-satanização da política. (CHAUI, 2000: p.86)

Descrevendo a forma de poder monárquico em que o rei representa Deus e não os governados e os que recebem o favor régio representam o rei e não os súditos, Marilena Chaui evidencia como a sagração do governante nestes moldes vem construir a prática da representação política em nosso país, que até os tempos atuais os representantes políticos, embora eleitos, não são percebidos como representantes, e sim como representantes do Estado em face do povo, o qual se dirige aos representantes para solicitar favores ou obter privilégios. Esta relação se manifesta com grande força no populismo da política brasileira.

Em resumo, a autora descreve o populismo como um poder que ativamente se realiza sem recorrer às mediações políticas institucionais, pensado e realizado sob a forma de tutela e do favor, em que o governante é detentor exclusivo do poder e do saber,  como estando fora e acima da sociedade, um poder de tipo autocrático, que na atualidade relacionada da autora tem esse aspecto favorecido pela ideologia neoliberal, com o personalismo, narcisismo e intimismo trabalhado através do “marketing político” e da “indústria política”.